- Historiador com doutorado na Universidade Federal do Rio de Janeiro, colaborador com a imprensa e autor de 26 livros.
Embarco na expedição do naturalista Maximiliano de Wied-Neuwied, príncipe de um Estado alemão antes da unificação do país. Maximiliano saiu do Rio de Janeiro numa caravana formada por escravos, caçadores, batedores e Sellow e Freyreiss, dois colegas seus também alemães e naturalistas, que já conheciam o Brasil. A expedição começou no Rio de Janeiro e acabou em Salvador, prolongando-se de 1815 a 1817. Ela seguiu a costa brasileira com algumas entradas para o interior.
Na altura de Barra do Furado, o príncipe e sua comitiva tomaram a estrada em direção a Campos dos Goytacazes e daí até São Fidélis. Não havia propriamente uma estrada, mas apenas uma trilha que permitia percorrer de Nova Friburgo a São João da Barra. Em 1837, o Major Henrique Luis de Bellegarde e Niemeyer deu notícia dela em seu relatório sobre a 4ª seção. Ela serviu de base para a construção da RJ-158. (Relatório da 4ª Seção de Obras Públicas da Província do Rio de Janeiro Apresentado à Respectiva Diretoria em Agosto de 1837. Rio de Janeiro: Imprensa Americana de I.F. da Costa, 1837).
Como historiador ambiental, eu estava em espírito como Maximiliano. Cruzei os rios outrora volumosos, como os Rios do Colégio e Pedra d’Água. Ainda hoje, me emociono com as anotações que ele deixou no seu diário de viagem, como estas abaixo:
“Após atravessarmos agradável região cheia de aspectos variados, atingimos a fazenda do Colégio, já ao anoitecer; seguimos, porém, antes que ficasse completamente escuro, até o pequeno rio do Colégio, que éramos obrigados a transpor. Os cavalos e burros tiveram que deslizar por forte rampa, que a chuva tornara de todo escorregadia, e alguns rolaram por ela abaixo. Contudo, passamos sem novidade a profunda e rápida corrente, embora ficássemos completamente encharcados. Logo penetramos numa densa floresta, à margem do rio, que prosseguiu, durante légua e meia, até S. Fidélis. Era, então, noite fechada e a trilha, muito estreita, passando, muitas vezes, sobre a própria barranca íngreme do rio, era inóspita e obstruída pela galharia seca e as árvores tombadas. O soldado, que conhecia bem o caminho, cavalgava adiante, e constantemente apeava, com o nosso pessoal, para remover os obstáculos, o que nos obrigou, muitas vezes, a afastar os cavalos a boa distância. Chegamos, por fim, a uma brusca e profunda ribanceira, atravessada por estreita ponte constituída por três troncos de árvores. Puseram nela uma série de travessas, para garantir marcha mais firme aos animais; apesar disso, escorregaram em várias ocasiões; e alguns quase caíram. Com um pouco de paciência, conseguimos, felizmente, superar mais essa dificuldade. Nas sombras da floresta, esvoaçavam inúmeros insetos luminosos, gritavam curiangos, grandes cigarras se ouviam a extraordinária distância, e a estranha toada de um exército de rãs ressoava nas trevas noturnas da brenha solitária. Alcançamos, afinal, um campo à beira do rio, e achamo-nos de repente no meio das malocas dos índios Coroados de S. Fidélis.” (Viagem ao Brasil. Belo Horizonte/São Paulo: Itatiaia, Edusp, 1989).
Em São Fidélis, que à época não passava de uma aldeia cercada por densas matas, uma redução indígena, como se chamava, fundada pelos missionários capuchinos Angelo de Lucca e Vitorio de Cambiasca para proteger os índios dos brancos, acompanhei o interesse do Príncipe em seus desenhos. Ele não desenhava bem. Seus registros iconográficos foram refeitos na Europa por um artista desconhecido. Ele desenhou a Igreja Matriz em meio às florestas e uma casa de campo, reproduzida abaixo.
Ele visitou as aldeias dos puris, coroados e coropós, já aculturados. Naquele tempo, não havia nenhuma ponte para cruzar o rio. Era preciso fazê-lo de canoa. Na margem esquerda do Paraíba do Sul, ainda não havia o bairro de Ipuca. Toda a área era coberta por florestas. A comitiva de Maximiliano fez contato com índios puris semiaculturados. Na ocasião, Freyreiss comprou um adolescente puri. Não gostei disso, mas não falei nada. Afinal, era costume da época. Os índios o venderam sem nenhum remorso, e o adolescente partiu com o naturalista demonstrando total indiferença com seu povo.
Na margem esquerda do rio, Maximiliano anotou a presença de “Sombrias, densas, altas florestas que se alternam com verdejantes colinas, que se abeiram do rio e nas quais existem numerosas fazendas. Em alguns lugares, essas matas imensas e românticas vão longe, acompanhando o rio, e se estendem, sem interrupção, pelo interior adentro. Do cume sobranceiro das montanhas, divisam-se, embaixo, vales umbrosos interceptando o ermo agreste, completamente cobertos pelos altaneiros gigantes da floresta, e cujo silêncio só de raro em raro é quebrado pelas passadas do Puri saqueador e solitário. Penetramos, em seguida, numa sombria e majestosa floresta, onde voejavam lindíssimas borboletas.”
Depois, o grupo voltou de novo à margem direita, despediu-se dos seus anfitriões e retornou à margem esquerda, partindo para Campos. Mesmo sabendo de São José de Lionissa da Aldeia da Pedra, atual Itaocara, o príncipe não quis ir até lá. Mais tarde, em meados do século XIX, fui até lá encontrar-me com Burmeister, outro naturalista alemão. Relato este encontro em outro artigo.
Refletindo sobre o que Maximiliano escreveu sobre a paisagem divisada em São Fidélis em outubro de 1815, quando o “rio estava na extrema vazante”, à espera da “estação chuvosa” em “dezembro e janeiro”, quando o rio “transborda e inunda grande extensão da margens”, pensei como a paisagem mudou para pior. Em meados do século XIX, voltei a São Fidélis na companhia do revolucionário francês Charles Ribeyrolles e seu amigo o desenhista e pintor Victor Frond.
São Fidélis já estava muito mudada. O desmatamento já era considerável e a urbanização já havia crescido bastante. Ribeyrolles formulou um plano para o desenvolvimento da região no qual um dos pilares era a navegação do Paraíba do Sul da foz ao último desnível do rio (salto) em São Fidélis. Naquela ocasião, Frond fez alguns desenhos da vila a partir de Ipuca, que já contava com algumas casas.
Conheci São Fidélis em 1966. Posso dizer que morei em São Fidélis entre 1967 e 1970. Voltei a São Fidélis muita e muitas vezes desde então. Cada vez que retono à cidade, sinto-me mais melancólico. O município não tem mais o encanto do tempo de Maximiliano, de Ribeyrolles e do meu tempo. Os Rios do Colégio e Pedra d’Água estão sem mata ciliar, sua água cada vez mais barrenta e seu leito mais assoreado.
Os famosos valões do Norte-Noroeste fluminense estão desmatados e poluídos. São Fidélis padece de uma estiagem atroz, tanto quanto os demais município da região. Seu prefeito, inclusive, já decretou situação de emergência. São Francisco de Itabapoana, que também fascinou Maximiliano, segue o mesmo caminho.
Na longa estiagem vivida pela Região Sudeste, os rios, incluindo o Paraíba do Sul, enfrentam uma longa seca de 10 meses. Tudo indica que os efeitos das mudanças climáticas já se fazem sentir. Por outro lado, a Amazônia já não cumpre devidamente seu papel de abastecedor do Sudeste. E a Bacia do Paraíba foi toda desmatada, erodida e assoreada.