- Historiador com doutorado na Universidade Federal do Rio de Janeiro, colaborador com a imprensa e autor de 26 livros.
Numa guerra convencional, os ataques aéreos podem ser enfrentados com canhões antiaéreos, misseis e caças a jato. No ataque de chuvas volumosas, não há como se defender no ar. As chuvas atingem invariavelmente o solo e correm para as áreas mais baixas. Pode-se criar sistemas de defesa na superfície terrestre, mas parece que ainda estamos longe disso diante dos ataques recentes, muito mais destruidores que os do passado por conta das inegáveis mudanças climáticas.
Estudo a área situada entre os rios Itapemirim e Macaé, que, pela unidade ecológica e econômica, denomino de ecorregião de São Tomé. O eixo dela é o rio Paraíba do Sul, situado a meio caminho entre os dois rios limitantes da ecorregião. Ele é o maior rio a drenar a área. Pela margem esquerda, recebe afluentes que nascem em Minas Gerais. Pala margem direita, recebe rios da região serrana do Rio de Janeiro. Como drena uma imensa área, é natural que receba muita água quando chove de forma abundante.
Como não pude sair de casa por estarem várias estradas interrompidas por transbordamentos e rompimentos de diques, busquei informações sobre as enchentes na Ecorregião de São Tomé nos jornais e junto a meus atentos informantes. Na bacia do Itapemirim, se houve transbordamentos, eles não foram mais destruidores que os de 2020. Registrou-se transbordamento do rio principal na estrada de Penedo.
O rio Itabapoana transbordou, como sempre, em Bom Jesus do Itabapoana e Bom Jesus do Norte. Esse rio foi comprimido pelas duas cidades conurbadas, uma no estado do Rio de Janeiro e outra no estado do Espírito Santo.
Os córregos que correm no território de São Francisco de Itabapoana devem ter provocado alagamentos. Eles são fundamentais para a drenagem de águas pluviais para o mar. Porém, estão sendo destruídos progressivamente por entupimentos, barragens e mudanças de curso. Houve alagamento na praia de Santa Clara por falta de canais de escoamento. Não é a primeira vez que isso acontece. Não há, por parte do poder público de São Francisco de Itabapoana, qualquer intenção de construir um sistema de drenagem mais duradouro, aproveitando a proximidade do mar.
Tomemos o rio Paraíba do Sul no trecho Itaocara-foz. Em Miracema, o ribeirão Santo Antônio, afluente do Pomba, transbordou. Ele era lindo e límpido. Hoje, espremido pela cidade, transformou-se numa vala de esgoto. Aperibé também foi afetado pela enchente do Pomba, assim como Santo Antônio de Pádua. Pouco mais abaixo, Itaocara, núcleo urbano que se ergueu no encontro do Pomba com o Paraíba do Sul, foi invadida pelas águas. As ruas se transformaram em rios. Milhares de moradores tiveram de sair de casa, assim como casas abandonaram seus moradores.
Em Cambuci, mais uma vez o valão Dantas, que desce da serra do Monte Verde, ganhou volume e transbordou antes de chegar ao Paraíba do Sul. As prefeituras de Santo Antônio de Pádua, Aperibé, Cambuci e Itaocara decretaram situação de emergência, mas as águas não se importam com essas medidas governamentais convencionais. As águas são horizontalmente democráticas. Elas invadem as sedes municipais e os distritos.
Além de receber alto volume de água proveniente da abertura das comportas da represa Santa Cecília e de Minas Gerais pelo rio Pomba, São Fidélis também foi afetado pelas chuvas na Serra do Mar, em sua vertente interior. São Fidélis se espreme entre o pé da serra e a margem direita do Paraíba do Sul. A cidade comprimiu e cobriu o trecho final do valão Catarina. Com as chuvas na serra de alta declividade, as águas ganharam velocidade e fúria, atingindo a localidade de Palmital. Mas abaixo, o pouco urbanizado rio do Colégio ganhou força e afetou áreas rurais.
O rio Muriaé, que nasce em Minas Gerais, foi ganhando volume com as chuvas. O rio Carangola, seu afluente bastante acidentado, invadiu Porciúncula e Natividade.
O Muriaé transbordou em Laje do Muriaé e Itaperuna. Nesta cidade, sempre nos mesmos lugares, onde nenhum sistema de proteção é construído depois que a chuva passa.
Descendo mais, o Muriaé transbordou em Italva e Cardoso Moreira. Na altura de Três Vendas, já em Campos, o rio encontrou ambiente favorável com o dique de Boianga, rompido pela enchente de 2020, ainda aberto. As águas avençaram para o sistema irresponsável do DNIT, que protege a rodovia BR-356, mas não a comunidade de Três Vendas. Esse é um dos calcanhares-de-aquiles do baixo Muriaé sempre expostos a desastres. Entre Três Vendas e Campos, as águas passaram sobre a estrada em direção às lagoas da margem esquerda do baixo Muriaé, como no passado.
Em Campos, o rio passou de 10,40 m e transbordou na cidade. Antes, a água já estava passando pelos bueiros. Em certos bairros, o dique não é tão protetor. 10,40 m. é apenas uma medida simbólica. Mais abaixo, a força das águas rompeu o dique de terra da margem direita do Paraíba do Sul em Barcelos. A Br-356 não se rompeu, mas a água de transbordamento passou sobre a estrada, que foi interditada. Para um amante da natureza, o rio Paraíba do Sul ganhou aspecto esplendoroso perto da foz. Imaginei que seu aspecto normal deveria ser esse no século XVI, quando Pero de Gois singrou suas águas à procura de um ponto favorável para a sede da capitania de São Tomé.
O sistema Ururaí foi atingido em Trajano de Morais, com deslizamento de encostas. Na bacia do rio Macaé, houve transbordamento nas áreas úmidas que a cidade de Macaé está urbanizando de forma errada. As águas passaram sobre a Linha Azul.
3 respostas
Que maravilha de artigo!
“… casas abandonaram seus moradores.” Só essa frase valeu o texto.
E a foto! A mais linda foto desta enchente. Sou fã de carteirinha da enchente do Rio Paraíba do Sul. Minha primeira experiência foi em 1966, no século passado. Era adolescente e, eu e meus irmãos, nadávamos entre a Cadeia Pública e a Ponte da Leopoldina, para desespero de mamãe. Idos tempos! Recordações me rondam!!!
Gosto do espetáculo da água, não do que ela faz pela falta de estrutura da região. Afinal, os invasores somos nós, poluidores de uma natureza q se defende como pode.
Abriram a barra da lagoa de Quipari sem nenhum estudo técnico em plena lua de maré cheia, que quando seca, drena tudo; no parque da fazenda Caruara que nunca foi foz de drenagem de águas do causadas p rompimento do dique em frente ao canal de são bento, provocando uma imensa mortandade de toda vida existente na lagoa!!!
Excelente artigo do incomparável Soffiati, no que tange a natureza da região.