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Arthur Soffiati

Arthur Soffiati

- Historiador com doutorado na Universidade Federal do Rio de Janeiro, colaborador com a imprensa e autor de 26 livros.

Entre os rios Itapemirim e Macaé (III): lagoa Feia e rios Macabu e Iguaçu

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Um complexo sistema hídrico à margem direita do rio Paraíba do Sul é peculiar por pelo menos dois aspectos: ele é formado por uma sucessão de rios e lagoas que tem sua origem na zona serrana e alcança o mar. Ao mesmo tempo, ele se comunica com o rio Paraíba do Sul a partir do rio Preto pela superfície e pelo lençol freático quando sai da zona serrana, em Itereré. Já examinamos os rios Imbé e Urubu, a lagoa de Cima e os rios Preto e Ururaí. Para cobrir todo o sistema, analisemos a lagoa Feia e os rios Macabu e Iguaçu.

Lagoa Feia 

A geologia nos ensina que o excedente hídrico resultante de chuvas e da ligação do rio Paraíba do Sul com a lagoa Feia encontra nesta um grande receptáculo. Essas águas escoavam para o mar por uma intrincada rede de canais naturais que convergiam para o rio Iguaçu (atual lagoa do Açu), ponto mais baixo da costa até a abertura da vala Furado, em 1688, pelo capitão José de Barcelos Machado. Outra parte infiltrava-se no solo, durante o estio, como acontece até hoje; a terceira parte, finalmente, “desemboca” ainda na atmosfera, face à extraordinária evaporação que se opera no vasto espelho d’água.

A primeira descrição da lagoa Feia feita por um europeu de que se tem notícia figura no “Roteiro dos Sete Capitães”, datado de 1632-34: “Era um grandíssimo lago ou lagoa d’água doce, a qual estava tão agitada com o vento sudoeste, tão crespas suas águas e tão turvas que metiam horror: aonde lhe demos o apelido de Lagoa-feia.” (SOFFIATI, Arthur (org). “Os mais antigos documentos europeus sobre a capitania de São Tomé”. Campos dos Goytacazes: Essentia, 2023). Ainda no século XVII, o jesuíta Simão de Vasconcellos, no seu livro “A vida do Padre João de Almeida da Companhia de Jesus na Província do Brasil, refere-se à lagoa como tendo “…tanta grandeza, que do meio dela mal se enxerga terra duma parte e doutra. São suas águas doces e habitadas de infinidade de patos e outras aves semelhantes…” (“A vida do padre João de Almeida, da Companhia de Jesus”. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1943). Ainda no século XVII, André Martins da Palma impressiona-se com ela, propondo seu aproveitamento pela Coroa: “Há uma alagoa mui grande para a comunicação dos povos vizinhos, que, sendo de água doce, se não vê terra, navegando-se por muitos dias, e é tão dilatada que por um mês e mais se não corre…” (Representação sobre os meios de promover a povoação e o desenvolvimento dos campos dos Goitacases em 1657. SOFFIATI, Arthur (org). “Os mais antigos documentos europeus sobre a capitania de São Tomé”. Campos dos Goytacazes: Essentia, 2023). 

Daí em diante, a lagoa, ao que se saiba, só volta a aparecer nos documentos como acidente geográfico impressionante no século XVIII pela famosa descrição do capitão Manoel Martins do Couto Reis, que lhe dedica uma das mais vivas palavras do seu relatório: “No meio (…) ou quase no centro deste terreno (…), está a celebrada lagoa Feia, a maior, e mais soberba de todas, com a extensão de 3½ léguas esforçadas na sua maior largura, fazendo suas pontas, e enseadas, por toda sua redondeza, de que lhe resultam mais de 18 léguas de âmbito. Dela se reparte uma considerável porção d’águas que por uma pequena garganta ou barra da parte do sul no lugar chamado Farinha seca (Nota do autor: “Assim se ficou chamando este lugar porque os seus primeiros descobridores, quando ali chegaram, não levavam mais provimento que uma pouca de farinha, talvez esperançados em encontrar alguma caça: erraram no projeto, contentaram-se com farinha sem mais adjunto. Deste acontecimento passaram a ter outro no dia seguinte; porque matando eles um tatu, o comeram sem farinha por se ter acabado, ficou também o lugar memorável denominando-se do Tatu) vai formar uma segunda lagoa com 2/4 de légua de largo e mais de 2 de comprido, porém uma e outra com natural correlação. Ela é um receptáculo geral dos rios, lagoas menores, infinitos córregos e brejais da sua circunvizinhança, por cuja causa não depende de chuvas a sua conservação (…) Os rios, que mais a fecundam de águas com incessante comunicação, são o Macabu e Ururaí, o qual é permanente sangradouro da lagoa de Cima e consequentemente do Imbé, seu legítimo gerador (…) São as suas margens por alagadiças pouco povoadas e, em muitas partes por areentas menos férteis, são bordadas de matos (…) É finalmente esta Lagoa navegável de canoas grandes: tem seus baixios e suficientes canais por onde facilmente poderão passar grandes barcas construídas com fundo de prato, o que seria muito útil por evitar o grande perigo das canoas ou o invencível precipício a que se expõem quando repentinamente se alteram as águas agitadas por ventos furiosos e ficam com semelhanças de um mar impetuoso”. (“Manuscritos de Manoel Martins do Couto Reis – 1785: Descrição geográfica, política e cronográfica do Distrito dos Campos Goitacazes”. Campos dos Goytacazes: Fundação Cultural Jornalista Oswaldo Lima; Rio de Janeiro: Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro, 2011).

Com efeito, ninguém conseguira, até então, um grau de detalhamento como o alcançado pelo cartógrafo do exército. Ele chamou a atenção para o solo arenoso existente em certos trechos marginais, vestígios de restingas que se formaram quando a lagoa se comunicava diretamente com o mar, se bem que, à época, não se cogitasse a respeito de processos geológicos. Ele registrou a ligação da lagoa Feia com a lagoa da Ribeira, na enseada do Tatu. Ele notou a vegetação ciliar existente e caracterizou as adjacências da lagoa com seus abundantes brejos e pântanos. Falou dos afluentes que a alimentam, acompanhando o rio Ururaí, principal deles, até a lagoa de Cima e, desta, até o Imbé. Assinalou os canais por onde defluíam as suas águas, mostrando que o volume de água dispensava a contribuição das chuvas para sua alimentação. Por fim, não deixou de anotar as informações porventura colhidas no local acerca dos topônimos Farinha Seca e Tatu, usados até hoje.

Maximiliano de Wied-Neuwied esclarece que “A lagoa Feia divide-se em duas partes, ligadas por um canal; a sua configuração não está rigorosamente inscrita em meu mapa, porque apenas a atravessei e não lhe pude abranger toda a superfície […] Peixe abundante, água doce. A extensa superfície é geralmente agitada pelo vento e, por isso, quase sempre perigosa para canoas: não dá calado a embarcações maiores. A Barra do Furado seca nos períodos em que o nível da água baixa. Toda essa região é recortada, ao longo da costa, de numerosos lagos, muitos dos quais omitidos no mapa.” (“Viagem ao Brasil”. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1989). Na verdade, o mapa a que se refere o naturalista viajante foi desenhado por Arrowsmith e aproveitado por ele na sua excursão científica do Rio de Janeiro a Salvador, entre 1815 e 1817, não só para orientação como para retificações. Sua descrição da lagoa Feia coincide com a de Couto Reis, embora menos detalhada. Certamente, ele está se referindo às lagoas Feia e da Ribeira, que se comunicam entre si.

Aires de Casal não acrescenta muito ao dizer que “A lagoa Feia é formada de duas desiguais e unidas por uma garganta estreita, uma ao norte com pouco menos de seis léguas de comprimento leste-oeste e pouco mais de quatro de largura; outra ao sul com quase cinco de comprido e meio de largo, é piscosa e aprazível; e só feia quando agitada do vento, em razão do seu pouco fundo, tendo só canais para canoas. Suas águas são sempre doces e saudáveis, ainda que turvas pela contínua agitação dos ventos (…) Tem dentro uma considerável península.” (“Corografia brasílica”. São Paulo: Edusp, 1976). Vivendo na região, José Carneiro da Silva fala com o conhecimento que a experiência empírica lhe confere: “Quase no meio dos Campos está a lagoa Feia, que a princípio teve o nome de  lagoa do Iguaçu: e é de água doce; tem nove léguas de comprido, cinco de largura e trinta a trinta e duas de circunferência (…) Forma-se das águas dos rios Macabu e Ururaí e de outros muitos córregos e brejos que nela deságuam. O nome de Feia talvez lhe venha porque, sendo muito baixa, com qualquer vento se encrespam as suas águas e se faz temível para quem deseja embarcar-se: a sua situação é toda mui agradável, a sua forma é irregular por causa dos estreitos e pontas que tem, as quais fazem  diferentes baías e algumas tão grandes que a vista não alcança o lado oposto; as suas águas são mui saudáveis porém turvas pelo contínuo movimento e só ficam cristalinas passados muitos dias, depois de estarem em casa ou passadas pelos filtros (“Memória topográfica e histórica sobre os Campos dos Goytacazes com uma notícia breve de suas produções e comércio oferecida ao muito alto e muito poderoso Rei D. João VI por um natural do país”, 3. ed. Campos dos Goytacazes: Fundação Cultural Jornalista Oswaldo Lima, 2010). 

Numa nota ao fim de sua memória, ele faz uma observação que merecerá a atenção dos pósteros. Ele aventa a possibilidade de existir uma comunicação subterrânea entre o rio Paraíba do Sul e lagoas e cursos d’água distantes. Henrique Luiz de Niemeyer Bellegarde confirma José Carneiro da Silva, dizendo-se inclinado “…a pensar com o sensato autor da “Memória topográfica e histórica de Campos”, que semelhante fenômeno é devido a grandes filtrações e a ocultos canais, que absorvem e derivam grande parte de suas águas; ao menos muitos fatos concorrem para fortificar esta opinião.”  (“Relatório da 4ª Seção de Obras Públicas da Província do Rio de Janeiro apresentado à respectiva Diretoria em agosto de 1837”. Rio de Janeiro: Imprensa Americana de I. F. da Costa, 1837). Em 1929, Francisco Saturnino Rodrigues de Brito considera que: “… é natural que depois do rio sair da região montanhosa (em Itereré), uma parte de suas águas corra subterraneamente, alimentando o grande lençol aluviano da planície formada pelo próprio rio em colaboração com mananciais menores e com o oceano; este lençol desce para a bacia da lagoa Feia e para o mar como suspeitavam Aires de Casal e o major Bellegarde”. (BRITO, Francisco Saturnino Rodrigues de. “Defesa contra inundações: melhoramentos do rio Paraíba e da lagoa Feia”. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1944).

Os autores do Relatório Gallioli, que quase certamente desconheciam os escritos do Visconde de Araruama e do major Bellegarde, parecem ter redescoberto a pólvora ao concluírem que “(…) ficou comprovada a sistemática correspondência entre as variações dos níveis do rio Paraíba e da lagoa Feia e, ainda, o fato, quase inexplicável, de que, durante os longos períodos de estiagem, a lagoa Feia não se resseca, embora as contribuições dos cursos d’água acima citados [rios Ururaí e Macabu, principalmente], tomados em conjunto, fiquem então reduzidos a uma descarga insignificante, da ordem de 7 m3/s. Note-se que a lagoa perde por evaporação uma descarga média aproximada de 8 m3/s (…) pode-se admitir que existe uma comunicação subterrânea entre o rio Paraíba e a lagoa Feia.” (GALLIOLI LTDA., Engenharia. “Baixada Campista: saneamento das várzeas nas margens do rio Paraíba do Sul a jusante de São Fidélis”. Rio de Janeiro: setembro de 1969).

Aspecto da lagoa Feia

Em Antonio Muniz de Souza, a descrição da grande lagoa não dispensa os elementos até então repetidos desde o tempo dos Sete Capitães. Há em suas palavras, porém, a sensibilidade de um naturalista: “… a lagoa Feia, cujo nome em nada é adequado, pois só merece o de lagoa formosa, é o centro onde deságuam todos os rios, córregos, vertentes, brejos que se acham de S. Salvador para o Sul; tem nove léguas de comprimento, cinco de largura e trinta e duas de circunferência; a sua forma é irregular, tem diversas ilhas e golfos, que formam diferentes baías, e alagoas tão grandes que se não avista o lado oposto; as suas águas são saudáveis, ainda que são de cor de café, e algum tanto turbas, não só porque todas as vertentes que despejam nela têm a mesma cor, como pelo moto contínuo em que se acham, porque sendo mui baixa, com qualquer vento se encrespam as suas águas tornando-se temível a quem deseja vadeá-la embarcado, pelo que talvez tivesse o nome de Feia.” (“Viagens e observações de um brasileiro”, 3ª ed. Salvador: Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, 2000).

Encerramos a revisão da literatura sobre a lagoa Feia com Teixeira de Mello, já que, daí em diante, as lagoas tornam-se sistematicamente objeto de transformação para fins de saneamento e de incremento das atividades econômicas dominantes na região. Em linhas gerais, ele repete seus antecessores, salientando que seu nome indígena era Iguaçu; que suas medidas alcançavam 32 quilômetros de comprimento por 24 quilômetros de largura, com uma circunferência de 130 quilômetros e fundo suficiente para a navegação de pequenos vapores; que seus principais afluentes são os rios Ururaí e Macabu; que se trata de um pequeno mar interior cuja travessia se torna perigosa em dias de tempestade; que D. Pedro II propôs denominá-la de lagoa Bonita; que ao sul dela delineia-se uma península com 6 quilômetros de extensão, quase dividindo-a ao meio; e que uma das enseadas, segundo Casal, chamava-se Saco da Pernambuca (“Campos dos Goitacases em 1881”. Rio de Janeiro: Laemmert, 1886). Quanto ao Saco da Pernambuca, Teixeira de Mello fez confusão, pois Casal coloca-o na lagoa de Cima e não na Feia.

Lagoa Feia vista do morro do Itaoca: extensa área úmida

Em 1978, tive a oportunidade de singrar as águas da lagoa Feia no sentido de sua largura, partindo de Ponta Grossa dos Fidalgos. De repente, barqueiro e eu fomos surpreendidos por uma tempestade e teríamos temido naufragar não fossem as palavras tranquilizadoras do velho Manoel Rocha, pescador experiente que conduzia a canoa em que estávamos embarcados. Passada a borrasca, no centro do mar interior, não conseguíamos distinguir com clareza as suas margens. E a lagoa já era apenas uma pálida sombra de sua fisionomia antiga, em vista das sucessivas sangrias, obras de drenagem e invasões perpetradas por proprietários marginais em seu leito. Dos cerca de 400 km² atribuídos a ela no século XIX, sua área reduzira-se a mais ou menos 170 km².

Rio Macabu

Dos corpos d’água integrantes da bacia da lagoa Feia, um mereceu destaque dos cientistas, memorialistas e viajantes. Trata-se do rio Macabu, que tem suas nascentes na zona serrana, atravessa a Formação Barreiras e forma uma pantanosa planície nas adjacências da sua foz. Um geólogo da nova geração aponta no rio Macabu um caso de rompimento de diques marginais com deposição de sedimentos. O processo pode ser resumidamente descrito da seguinte forma: num período de cheia, o rio Macabu teria rompido o dique da sua margem esquerda por ele próprio construído, formando uma rede bifurcada e radial de canais semelhante às nervuras de uma folha. Atingindo a cota mais alta de deposição, as águas começam a baixar, restando apenas alguns canais ativos até sua completa desativação. Esta particularidade pode explicar a infinidade de brejos que existiam junto à sua foz, traço que foi notado por vários autores (DIAS, Gilberto T.M. “O complexo deltaico do rio Paraíba do Sul”. IV Simpósio do Quaternário no Brasil (CTCQ/SBG), publ. esp. nº 2. Rio de Janeiro, 1981). Já o Roteiro dos Sete Capitães faz registro dele, explicando que recebeu este nome em alusão ao rio Macacu, nos arredores do Rio de Janeiro. Couto Reis só pôde notar que suas margens baixas favoreciam os transbordamentos e a formação de “largos e compridos brejais despidos de matos, que no tempo seco dão admiráveis pastos e nutrição ao gado.” Por estar sua nascente em local de difícil acesso, na época, considerou-a ignorada. Aires de Casal já fornece mais detalhes, esclarecendo que ele “… principia na falda da Serra do Salvador pouco arredado da origem do (…) rio de São Pedro, confluente do Macaé. Seu álveo é tortuosíssimo; sua corrente tranquila quase sempre por entre pântanos, procurando o nordeste, e deságua na lagoa Feia. É navegável sem cachoeiras até perto de sua nascença.”

Aspecto do rio Macabu

Despretensiosa, a “Memória topográfica e histórica sobre os Campos dos Goitacases”, publicada por José Carneiro da Silva (Visconde de Araruama) em 1819, tornou-se obra de consulta obrigatória para todos aqueles que escreveram sobre a região. Examinando os autores que publicaram depois dele, é fácil rastrear a sua influência. Vejamos sua descrição do rio Macabu e acompanhemos seus seguidores. Descrito por Pizarro e Araujo, o rio Macabu, “oriundo das altas montanhas do Frade, corre quase constantemente ao nordeste, até se despejar na lagoa Feia. Por ambas as margens dele se conservam grandes e vistosos pantanais, enquanto duram as chuvas; e duas pequenas lagoas, que chamam do Peixe, pelo muito aí criado, subsistem perenemente (…) As terras do seu distrito indicam ser de boa produção e os sertões se reputam mui salubres, talvez porque, situados os seus pântanos em lugares altos, esgotam com presteza as águas, e não as represam para se putrefazerem. As águas do mesmo rio são cristalinas, e de melhor origem que as do Muriaé e Paraíba, sempre turvas.” (PIZARRO E ARAUJO, José de Souza Azevedo. “Memórias Históricas do Rio de Janeiro”, 3º vol., 2ª ed. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1945).
Muniz de Souza parece ter lido os autores supracitados, pois os repete no fundamental. Bellegarde idem, acrescentando apenas que o rio separa os municípios de Campos e Macaé. Por fim, Teixeira de Mello coloca sua nascente na junção das serras de Macaé, do Imbé e dos Crubixais, cordilheira dos Aimorés. No seu curso, separa as paróquias de N. Senhora da Conceição de Macabu e de Quissamã e termina na lagoa Feia. Ladeado por incontáveis pântanos, é navegável a pequenas pranchas e canoas. Fala de uma lagoa chamada dos Patos, que, a seu tempo, não mais existia.
Com as obras de drenagem efetuadas pelo Departamento Nacional de Obras e Saneamento, entre 1940 e 1990, a foz original do rio Macabu foi fixada num ponto da lagoa Feia, com o seu baixo curso canalizado.  Em 1950, foi construída uma barragem no curso alto do rio para geração de energia elétrica. Suas águas foram desviadas para o rio São Pedro, da bacia do rio Macaé. O rio Macabu renasce com a contribuição de seus afluentes abaixo da barragem.

Rio Iguaçu

Antes do século XX, nenhum dos autores mencionados neste texto conseguiu descrever o emaranhado de canais por onde a lagoa Feia deflui no mar. O autor do “Roteiro dos Sete Capitães” ficou pasmo com a intrincada malha de rios e lagoas, constatando que, com certeza mesmo, só se podia afirmar que as águas da grande lagoa fluíam em direção ao rio Açu. A passagem a seguir constitui o primeiro registro que se conhece do escoamento da lagoa Feia para o mar: “… caminhamos sobre a marinha e tivemos areais: para suportarmos das fadigas descemos das marinhas para a campina em razão dos areais; caminhamos beirando a campina da parte do noroeste; faziam lagos de água, e destas águas é formado o rio Iguaçu. Ele tem seu nascimento na grande lagoa Feia, a que lhe demos o apelido, nos fundos sacos apantanados traz sua corrente a leste; suas águas são encanadas por uma espécie de rio, fazendo suas voltas, aonde traz sua corrente pela parte do sudoeste pelo sítio do curral do capitão Monteiro, na Castaneira, apelido que ele lhe deu; segue até certa altura da campina, seguindo para leste para a parte da marinha. Neste lugar finda o dito encanamento. Suas águas se espraiam pela dita campina, sempre a leste, não muito longe da marinha; deste lugar fazem sua quebra a procurar o nordeste, isto até a barra do dito Iguaçu, ao norte do cabo de São Tomé.”

Este relato mostra o quão fidedigno é o “Roteiro” ao tratar da paisagem e da topografia. De fato, a marinha, estreita faixa de restinga que vai de Barra do Furado ao norte do Cabo de São Tomé cansa o caminhante seja no plano inclinado da praia ou na parte mais alta do cômoro. Descendo para a campina, logo atrás da barreira arenosa, encontra-se a antiga baixada aluvial, de formação plana e firme, por onde se marcha entre canais, lagoas e áreas embrejadas. Ainda é possível deparar com alguns canais que, antes da abertura da Barra do Furado e das grandes obras de engenharia, rumavam para o norte até se espraiarem num areal baixo, por onde as águas encontravam passagem para romper o obstáculo de areia e defluir no mar por uma foz.

Após relacionar um número interminável de lagoas e rios ao sul e a oeste da lagoa Feia, o experiente cartógrafo Couto Reis confessa a sua dificuldade em compreender o sistema de escoamento das águas da planície. “São todos trabalhosos de vadear-se, por fundos, e atoladiços: são também complicados de muitos braços, que, ou formam ilhas, ou se desvanecem convertendo-se em pantanais.” O capitão percebe que são muitos braços por onde a lagoa Feia se distribui. Quando lhe foi dada a incumbência de traçar um mapa da região, o rio Furado já tinha sido aberto pelo capitão José de Barcellos Machado, permitindo o escoamento da maior parte das águas através dele. No entanto, o agudo senso de Couto Reis não deixa que se engane quanto à dinâmica hídrica da planície. “Além desta barra do Furado –observa ele–, abrem outra no Iguaçu, quando entendem ser necessário, o que conseguem com muita facilidade: é igualmente útil, porquanto ajuda muito as vazantes, e ao meu parecer julgo que discorre aquele rio por um plano mais inferior a todos os mais, tanto assim, que estando a barra do Furado tapada todas as águas pendem para ele.”  

Aspecto do rio Iguaçu entre a lagoa Feia e o canal da Flecha

Em 1925, o engenheiro José Martins Romeu, observando atentamente as marés, fixou marcos de referência mais precisos. Saturnino de Brito passou a adotar a Referência de Nível (RN) do engenheiro. Por ela, constata-se que os pontos mais baixos medidos na região se situam no lado sul da barra do Açu (3,025 m) e na barra do Furado (3,020 m). Cabe então perguntar por que o delta da lagoa Feia dirigia-se para o Açu, 0,005 m mais alto que o Furado. A resposta é que a proteger o Furado existia um paredão de areia alto e compacto que represava as águas da lagoa Feia. Por maior que fosse o ímpeto das águas nas cheias, elas não conseguiam romper o paredão e desviavam-se para o Açu, onde a costa se aplaina e não oferece maior resistência.

Não é diferente a informação transmitida por Aires de Casal: a lagoa Feia deflui por uma rede de canais que, nos seus leitos derivantes, acabam por formar inúmeras ilhas e esbarram num extenso e alto cômoro de areia grossa e firme. Por fim, acabam encontrando as passagens que os conduzem ao Furado e ao rio Iguaçu ou Castanheta, sendo este o principal distributário do delta no mar. Em sistema tão complexo, não é de se estranhar que surjam sinonímias e confusões. A descrição de José Carneiro da Silva, emitida dois anos depois da de Casal, no empenho de compreender o quadro, acaba por simplificá-lo. Estamos longe da diversidade apontada por Couto Reis. O visconde de Araruama a reduz a cinco rios apenas que acabam por se juntar num ponto e a desembocar na barra do Furado. Dá o rio Iguaçu como morto, ao mesmo tempo em que afirma seguirem os cinco rios reunidos, após descarga no mar, agora com o nome de rio Capivara, em direção à barra do Canzoza ou do Iguaçu. Ao mesmo tempo que morto, o Iguaçu continua ativo. Tomando as palavras do visconde, o major Bellegarde tenta organizar a enredada teia da seguinte forma: “Não tem esta lagoa [Feia] saída constante para o oceano, mas sim alguns rios por onde se esgota e que reunindo-se ao sul do cabo de S. Tomé rompem naturalmente nos tempos de grandes cheias, a barra chamada do Furado; e são os rios: o da Onça, o Novo do Colégio, o da Castanheta, o do Barro Vermelho e o do Iguaçu. Como o cômoro de areias próximo ao mar e os ventos reinantes muitas vezes conspiram para obstar a saída das águas, acontece que, rodeando estas então pelo interior do cômoro, vão formar ao norte do citado cabo a lagoa Iguaçu, que abre para o Oceano a barra denominada Canzonga e deixa descobertos os rios e extensos pastos.”

Só no século XX, teremos descrições mais pormenorizadas das duas grandes bacias hídricas da planície fluviomarinha. O intuito, porém, já não é mais a compreensão senão que a transformação. É a geometrização do espaço com fins de saneamento e, sobretudo, para beneficiar a economia agropecuária e agroindustrial.

Com a abertura do canal da Flecha, entre 1942 e 1949, o complexo rio Iguaçu foi dividido em duas partes. A primeira se estende da lagoa Feia ao referido canal, onde é barrado pela comporta de Furadinho. A segunda se estende do mesmo canal à localidade do Açu. Este segundo segmento está todo retalhado, havendo apenas uma parte contínua entre o Banhado da Boa Vista e a barra do Açu, contígua ao mar. Corresponde à antiga foz do rio Iguaçu.

Segmento final do rio Iguaçu, hoje lagoa do Açu

 

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