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Arthur Soffiati

Arthur Soffiati

- Historiador com doutorado na Universidade Federal do Rio de Janeiro, colaborador com a imprensa e autor de 26 livros.

Entre os rios Itapemirim e Macaé (II)

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Tendo já examinado os rios entre as bacias do Itapemirim e do Guaxindiba, continuemos agora com a bacia do Paraíba do Sul.

Rio do Paraíba do Sul

            O rio Paraíba do Sul e seus afluentes nascem em área montanhosa das Serras do Mar e da Mantiqueira. No trecho final do seu curso, os rios Paraíba do Sul e Muriaé cortam tabuleiros e entram na planície que ambos contribuíram para formar, notadamente o Paraíba do Sul. Alberto Ribeiro Lamego levanta a hipótese de não ter existido o trecho do Paraíba do Sul entre São Fidélis e a foz do Muriaé no Pleistoceno, há um milhão de anos passados. Segundo ele, “O Paraíba parece ter sido um afluente do Muriaé, ou melhor o Muriaé abaixo de Cachoeiras era o antigo leito do Paraíba, que prolongando o alto curso em mais um estirão retilíneo para o nordeste, somente naquelas redondezas vinha a infletir para o sudoeste em busca do oceano.” (Restingas na costa do Brasil. “Boletim nº 96”. Rio de Janeiro: Departamento Nacional da Produção Mineral/Divisão de Geologia e Mineralogia, 1940). Ainda seguindo Lamego, em vista do processo de deriva, o curso do afluente do Muriaé desviou-se para a esquerda e encontrou passagem numa garganta entre os morros do Sapateiro e do Peito de Moça para desembocar na grande baía do baixo Pleistoceno que irá progressivamente ajudar a colmatar. O Muriaé, de rio coletor, passa a ser tributário do Paraíba já na planície que começava a se formar. No entanto, o influxo exercido pelo antigo receptor sobre o novo leito do seu ex-afluente, leva-o a seguir o rumo norte-sul, em direção ao que futuramente seria o Cabo de São Tomé. O primeiro leito do Paraíba do Sul na planície sedimentar devia começar em local situado em frente à foz do Muriaé e desembocar, conforme Lamego, no mar por um delta do tipo “Mississipi”, entre os atuais cabo de São Tomé e lagoa Feia. Atualmente, esta tese foi afastada pelos estudiosos, levando-se em conta a alta energia dos movimentos marinhos. Esse paleocanal, denominado Grande ou do Cula, deixou vestígios que ainda hoje podem ser vistos. Por novos estudos, sabe-se hoje que o braço principal do Paraíba do Sul desembocou logo no ponto em que se situa a sua foz atualmente (MARTIN, Louis; SUGUIO, Kenitiro; DOMINGUEZ, José M. L.; e FLEXOR, Jean-Marie. Geologia do Quaternário costeiro do litoral norte do Rio de Janeiro e do Espírito Santo. Belo Horizonte: CPRM, 1997).  

Manoel Martins do Couto Reis registra que o córrego Grande nasce do Paraíba do Sul, a oeste da ponta do Recife, e recolhe águas de diversas partes, com as quais engrossa seu curso, até encontrar-se com o rio do Valentim (COUTO REIS, Manoel Martins do. “Manuscritos de Manoel Martins do Couto Reis – 1785: Descrição geográfica, política e cronográfica do Distrito dos Campos Goitacazes”. Campos dos Goytacazes: Fundação Cultural Jornalista Oswaldo Lima; Rio de Janeiro: Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro, 2011). A “ponta do Recife” é, provavelmente, o estreitamento do leito do Paraíba decorrente de uma concreção residual da Formação Barreiras desgastada pela erosão hídrica pouco abaixo da foz do Muriaé e já cercada pela cidade de Campos, atualmente conhecida pelo nome de Fundão. Em outro trabalho, Lamego escreve que “… podemos acompanhar-lhe o traçado desde a saída do Paraíba, em frente à foz do Muriaé de onde segue para o sul e contorna a cidade, passando à frente da Usina do Queimado para continuar até Santo Amaro ao longo da Estrada de Ferro Leopoldina.” (“Geologia das quadrículas de Campos, São Tomé, Lagoa Feia e Xexé”. Boletim nº. 154 da Divisão de Geologia e Mineralogia. Rio de Janeiro: Departamento Nacional da Produção Mineral, 1955). Um geólogo da nova geração, falando dos braços do primitivo Paraíba, salienta que: “O mais conspícuo desses paleocanais pode ser traçado continuamente [a partir de fotografias aéreas] desde Campos até as proximidades de Muçurepe, onde se bifurca em duas direções. Um dos ramos atinge o litoral entre São Tomé e Barra do Furado; neste local a lagoa Lagamar tem a sua morfologia condicionada pelo paleocanal. O outro ramo segue na direção do cabo de São Tomé e se espalha próximo ao litoral atual na forma de numerosos canais radiais rasos, difusos e de padrão meandrante. Todo este sistema de paleocanais é truncado por uma faixa arenosa caracterizada por uma sucessão de cordões arenosos. Atualmente não existe circulação de água por esses canais, desenvolvendo-se naquele local um extenso pantanal (DIAS, Gilberto T.M. “O complexo deltaico do rio Paraíba do Sul”. IV Simpósio do Quaternário no Brasil (CTCQ/SBG), publ. esp. nº 2. Rio de Janeiro, 1981).

Rio Paraíba do Sul

            Quando o curso do Paraíba do Sul começou a derivar para leste, novos canais foram se constituindo até que se estabilizasse o leito atual, que desemboca no oceano à altura de Atafona. Os antigos canais continuaram ainda ativos na estação das águas. Não é, pois, totalmente infundada a informação fornecida por Augusto de Carvalho, de acordo com quem “O Paraíba, em épocas remotas, e segundo as melhores probabilidades, depois de banhar a vila de S. Salvador, hoje cidade de Campos dos Goitacases, rolava suas águas até Barra Seca, e daí entrando pelo lugar das Valetas, e atravessando o Taí Pequeno, o Ingá, etc., ia desembocar no oceano, duas léguas abaixo do Furado, pela barra do Açu ou Açuzinho, -mais conhecido ao presente por Iguaçu. Ainda hoje, nas grandes inundações, o maior volume de suas águas toma esta direção. (…) Com o decurso do tempo o leito do Iguaçu foi se alteando e o Paraíba pouco a pouco avolumando as suas águas na direção de S. João da Barra, a tal ponto que já em 1709 a barra aqui apresentava um fundo de -13 palmos,- fundo este que ainda hoje se alcança na preamar das marés extraordinárias, de 6 a 8 pés d’água (CARVALHO, Augusto de. “Apontamentos para a História da Capitania de São Tomé”. Campos: Tip. e Lit. de Silva, Carneiro e Comp., 1888).

            Todavia, com a elevação das margens do canal principal pela deposição de sedimentos carreados pelo próprio rio e, a partir do século XIX, com obras de engenharia, fixou-se o novo curso do rio. Ainda assim, durante as cheias, as águas extravasavam o leito ultrapassando os diques marginais naturalmente formados. Esse excedente hídrico, na margem direita, fluía, sem retorno, em direção à lagoa Feia por ela situar-se em cota mais baixa que a do rio. Na margem esquerda, ele se espalhava pelas inúmeras lagoas existentes até poderem retornar ao rio, finda a cheia. É desse novo trajeto que nos falam os viajantes e memorialistas. Couto Reis, o meticuloso topógrafo da infantaria, examinou-o atentamente em fins do século XVIII, explicando que ele “… chega aos Campos Goaitacaz a fenecer no mar por duas barras, uma ao norte chamada de Gargaú, que por baixa não admite entrada mais que a canoas, e outra ao sul com mais de 100 braças de largura, e fundo diminuto, unicamente para sumacas, que sustentam 3000 arrobas de peso (…) Neste rio, há um avultado número de ilhas do primeiro cachoeiro para cima, e deste para baixo contam-se presentemente 72 umas menores e outras maiores, com capacidade para estabelecimento de lavouras, com matos para lenha, e algumas há que têm campinas muito boas para criação de gado; porém pela maior parte as menos altas, são sujeitas a inundações. Destas se tem extinguido algumas, por violência da correnteza das águas, e com a mesma facilidade se criam outras (COUTO REIS, Manoel Martins do. “Manuscritos de Manoel Martins do Couto Reis – 1785: Descrição geográfica, política e cronográfica do Distrito dos Campos Goitacazes”. Campos dos Goytacazes: Fundação Cultural Jornalista Oswaldo Lima; Rio de Janeiro: Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro, 2011).

            Tem-se a impressão de que nunca se descreveu tão bem o rio Paraíba do Sul até o século XX. Não importa que faltem explicações impossíveis e descabidas para a época. Importa é que Couto Reis registrou sem impressionismos a delgada lâmina d’água do delta, fruto da luta entre o rio -para manter abertas as barras- e o mar- para fechá-las. Importa é que ele soube notar a construção e a desconstrução de ilhas, resistentes as esculpidas nos tabuleiros envolvidos pelo leito do rio, friáveis as formadas pela acumulação de sedimentos. Embora o mapa e o manuscrito do capitão só tenham sido divulgados oficialmente em 1888, por Augusto de Carvalho, parece que os pósteros repetiram as informações que ele obteve em contato direto com o ambiente estudado. Para se ter uma ideia, lê-se em Aires de Casal, escrevendo em 1817, que, da foz até a primeira cachoeira, existem, no Paraíba, 72 ilhas e, dali para cima, um número muito maior (CASAL, Manuel Aires de. “Corografia Brasílica”. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1976).     

Nas palavras pronunciadas em 1819 por José Carneiro da Silva, o rio Paraíba desemboca por duas barras; uma, perigosa, admite sumacas, outra, chamada Gargaú, somente admite canoas. Apresenta enchentes todos os anos, algumas tão volumosas que cobrem grande parte da planície, de tal forma que muita água escoa pela barra do Furado (SILVA, José Carneiro da. “Memória topográfica e histórica sobre os Campos dos Goytacazes com uma notícia breve de suas produções e comércio oferecida ao muito alto e muito poderoso Rei D. João VI por um natural do país”, 3ª edição. Campos dos Goytacazes, Fundação Cultural Jornalista Oswaldo Lima, 2010). Pizarro e Araújo, logo depois, observa que o Paraíba deságua no Oceano da Costa Brasileira por “…duas bocas, uma das quais, distante meia légua abaixo da Vila de São João, e perigosa, admite sumacas de 80 caixas de açúcar, e a outra mais ao norte, chamada Gargaú, com aptidão somente para canoas” (PIZARRO E ARAUJO, José de Souza Azevedo. “Memórias históricas do Rio de Janeiro”, 3º vol., 2ª ed. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1945), acrescentando outras informações que não eram de todo estranhas a Couto Reis. Henrique Luiz de Niemeyer Bellegarde cita, como tributários do Paraíba, os rios Piraí, da Pomba, de Bengalas, Dois Rios, do Colégio, Preto e Muriaé, completando que ele tem 72 ilhas da foz até a cachoeira de S. Fidélis (BELLEGARDE, Henrique Luiz de Niemeyer. “Relatório da 4ª Seção de Obras Públicas da Província do Rio de Janeiro apresentado à respectiva diretoria em agosto de 1837”. Rio de Janeiro: Imprensa Americana de I. F. da Costa, 1837). O eco destas palavras se faz ainda ouvir no final do século XIX, ao escrever Teixeira de Melo que “Conta o Paraíba 72 ilhas, pela mor parte insignificantes, sem denominação especial, a mais considerável das quais, abaixo da cidade, em águas que banham o município de S. João da Barra, tem entretanto em si uma fazenda de açúcar.” (MELLO, José Alexandre Teixeira de. “Campos dos Goitacases em 1881”. Rio de Janeiro: Laemmert, 1886).

            Ainda que confrontando suas notas com os escritos de autores brasileiros, os viajantes estrangeiros conseguem se libertar do padrão Couto Reis. O depoimento de Maximiliano de Wied-Neuwied é bastante pessoal, como se pode ver: “Depois de caminharmos cerca de três léguas, atingimos de novo as margens do Paraíba, que eram, nesse ponto, de admirável beleza. Três ilhas, parcialmente cobertas por imponentes árvores seculares, interrompiam-lhe a superfície. O rio, de largura não inferior à do Reno, corre com rapidez, e em suas margens se intercalam colinas verdejantes, cobertas de florestas e cerrados (…) Os vales, entre essas colinas marginais, estão cheios de brejos aos quais uma espécie alta de bignoniácea empresta, muitas vezes, a triste aparência de mata ressequida (WIED-NEUWIED, Maximiliano de. “Viagem ao Brasil”. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1989).

Rio Paraíba do Sul em 1815, na visão de Maximiliano de Wied-Neuwied

            O padrão Reno está presente também em Burmeister, naturalista alemão que cruzou o rio Paraíba na altura da Aldeia da Pedra, atual Itaocara, perto de uma das extremidades da região norte-noroeste fluminense, para subir o rio Pomba rumo à Província das Minas Gerais: “Tendo o tamanho do Reno e a largura que este atinge em Colônia, seu aspecto é, porém, mais encantador, por causa das muitas ilhas cobertas de mato e das formações rochosas do Morro da Pedra.” (BURMEISTER, Hermann. “Viagem ao Brasil através das Províncias do Rio de Janeiro e Minas Gerais”. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1980).

Tschudi não vai muito além de dizer sobre o então majestoso rio que “… o leito do curso é mais largo em São Fidélis que em Campos, embora menos profundo e dividido em dois braços por uma ilha. Acima da vila existem vários rochedos e corredeiras, que impedem a navegação às barcaças a vapor.” (TSCHUDI, Johann Jakob von. “Viagem às Províncias do Rio de Janeiro e São Paulo”. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1980).

Rio Paraíba do Sul em desenho de Hermann Burmeister

Rio Muriaé    

De jusante para montante, o primeiro grande afluente do rio Paraíba, na região norte-noroeste fluminense, é o Muriaé, que, como todos os outros, nasce na zona montanhosa. Todo seu curso médio, ensina Lamego, é talhado em gnais e, da foz até o primeiro desnível brusco, em Cachoeiras, atualmente cidade de Cardoso Moreira, era ele navegável até fins do Império, num total de 53 quilômetros (LAMEGO, Alberto Ribeiro. “Mármores do Muriaé: Estado do Rio de Janeiro”. Boletim nº 97. Rio de Janeiro: Departamento Nacional da Produção Mineral/Serviço Geológico e Mineralógico, 1940). Depois de passar pela Formação Barreiras, já no seu curso final, ele deságua no Paraíba do Sul, em plena planície sedimentar quaternária.

Lamego chama a atenção para o fato de não existir, aparentemente, um divisor de águas entre os dois rios, nesta zona de planície circundada por elevações terciárias. A separá-los há tão somente um pontal côncavo em que as rochas de origem mais antiga foram removidas por força da erosão hídrica. Lamego considera este terreno triangular uma pequena mesopotâmia, no meio da qual situa-se o rio Morto, curso d’água atípico, visto não ter nascente ativa. Aos olhos do geólogo campista, trata-se de antigo leito talvez comum aos dois rios, remanescente da época em que os dois intercambiavam mais facilmente durante as cheias (LAMEGO, Alberto Ribeiro. “Mármores do Muriaé: Estado do Rio de Janeiro”. Boletim nº 97. Rio de Janeiro: Departamento Nacional da Produção Mineral/Serviço Geológico e Mineralógico, 1940).

Outro aspecto digno de nota observado por Lamego refere-se ao papel desempenhado pelas cheias do rio Paraíba sobre o comportamento do Muriaé e deste sobre os seus próprios afluentes. Em suas palavras: “… o Paraíba em suas cheias, em épocas não distantes, conquanto represando o Muriaé, despejava naturalmente a sua massa d’água sobre a planície da sua margem direita onde os sedimentos se depositavam. Enquanto isto, o afluente represado transformava todo o pontal mesopotâmico num vasto lago. A carga argilosa de suas águas, muito inferior à do rio mestre, era sedimentada pela margem direita, não bastando para cobrir toda a área do pontal. (…) Todos os córregos e valões são represados levando a enchente para montante a distâncias incalculáveis. E, para finalizar, uma grande represa líquida pode fechar, por sua vez, todo o baixo Muriaé. É o próprio Paraíba (LAMEGO, Alberto Ribeiro. “Mármores do Muriaé: Estado do Rio de Janeiro”. Boletim nº 97. Rio de Janeiro: Departamento Nacional da Produção Mineral/Serviço Geológico e Mineralógico, 1940). 

Para os colonos europeus, o rio Muriaé gozou de péssima reputação desde os primeiros contatos até a década de 1930. Pestífero e habitado pelos belicosos puris, os povoadores das áreas banhadas pelo rio o temiam e procuravam evitá-lo. Couto Reis, que o conheceu de perto, comenta que ele: “… é geralmente enfadonho por suas grandes voltas (…) São as suas margens abundantíssimas de varjarias excelentes em terreno alto; porém ainda assim com extensíssimas baixadas, de onde se geram longos brejais, que se comunicam com outros igualmente dilatados, que partem os Sertões das Cacimbas, e por vários córregos se esgotam, uns no Paraíba, e outros no Cabapuana. Abunda também de estimáveis madeiras e do socorro da sua navegação (…) A sua margem oriental até perto do primeiro cachoeiro, está muito bem povoada de engenhos (COUTO REIS, Manoel Martins do. “Manuscritos de Manoel Martins do Couto Reis – 1785: Descrição geográfica, política e cronográfica do Distrito dos Campos Goitacazes”. Campos dos Goytacazes: Fundação Cultural Jornalista Oswaldo Lima; Rio de Janeiro: Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro, 2011).

            Aires de Casal corrobora a sua fama de perigoso: “Suas águas, quando se começaram a cultivar as suas fertilíssimas adjacências, hoje povoadas de engenhos de açúcar, eram tão pestilentas, que quantos as bebiam, padeciam febres malignas, que ou lhes acabavam os dias, ou os deixavam pálidos e esverdeados por toda a vida. Os mesmos mantimentos produzidos nas terras inundadas pelas suas cheias eram pestíferos. O seu maior confluente é o denominado rio Morto por ser de corrente tranquila: suas águas são escuras, desde sua origem, que está nuns pantanais. Nas suas margens cria-se um cipó venenoso, chamado timbó, ou tingui, e uma árvore denominada guaratimbó (cuja raiz não é menos nociva), aos quais se atribui a malignidade de suas águas (CASAL, Manuel Aires de. “Corografia Brasílica”. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1976).

            Em sua “Memória topográfica e histórica sobre os Campos dos Goytacazes”, publicada pela primeira vez em 1819, José Carneiro da Silva comenta que o clima de Campos era, antigamente, um tanto doentio, principalmente nos recôncavos do rio Muriaé (SILVA, José Carneiro da. “Memória topográfica e histórica sobre os Campos dos Goytacazes com uma notícia breve de suas produções e comércio oferecida ao muito alto e muito poderoso Rei D. João VI por um natural do país”, 3ª edição. Campos dos Goytacazes, Fundação Cultural Jornalista Oswaldo Lima, 2010). Por seu turno, Pizarro e Araujo diz que suas águas eram doentias quando suas margens eram cobertas de florestas; no entanto, abatidas e ocupado o terreno por 28 engenhos, não provocavam mais moléstias. Quanto ao rio morto, originado em brejos muito extensos, apresentava águas turvas até as cercanias do Muriaé e havia em suas margens um cipó denominado timbó ou tingui e uma árvore chamada guaratimbó cujas raízes, juntamente com o cipó, são venenosos, uma vez que, batidos na água, matam todo peixe existente até que seu efeito se dissipe pela correnteza do rios. Tão forte é sua ação que contamina as terras atingidas pelas águas e os produtos que nelas se cultivavam. “Talvez dessa causa -conclui- procedam as malignas epidemias que ordinariamente grassam no Continente.” (PIZARRO E ARAUJO, José de Souza Azevedo. “Memórias históricas do Rio de Janeiro”, 3º vol., 2ª ed. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1945).

            O rio Muriaé teve um grande admirador em Antonio Muniz de Souza, naturalista amador natural de Sergipe. Como Couto Reis, ele subiu o curso d’água, em 1827, registrando suas impressões. Fala da navegabilidade do rio por barcos durante as cheias e por canoas nas estiagens até a primeira cachoeira, distante cerca de seis a sete léguas de Campos. Nota atentamente a configuração do seu leito maior, com brejos permanentes e extensas várzeas inundáveis no tempo das águas, excelentes para pastagens nas estiagens, mas impróprias para a lavoura. Dá conta de seus afluentes, sobretudo do córrego Carqueja, “de abundantes e permanentes águas”, das ilhas, das imponentes matas, dos peixes, dos animais terrestres, das aldeias puris e das atividades econômicas que galgavam suas margens progressivamente em direção à Província de Minas Gerais. Propõe, inclusive, medidas para estender a navegação acima da primeira queda d’água (SOUZA, Antonio Moniz de. “Viagens e observações de um brasileiro”, 3ª ed. Salvador: Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, 2000). Contrariando a opinião corrente, diz “… que as águas do rio são cristalinas e de ótimo sabor, e sendo turbadas pelas enchentes do rio, apenas estas passam, se tornam imediatamente dulcíssimas e cristalinas.” (SOUZA, Antonio Moniz de. “Viagens e observações de um brasileiro”, 3ª ed. Salvador: Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, 2000).

            Em conciso, mas informativo relatório, Bellegarde limita-se a escrever que o rio Muriaé recebe o rio Morto, que nasce no Brejo do Melo, e o córrego Carqueja, passando por ricas fazendas instaladas em suas margens (BELLEGARDE, Henrique Luiz de Niemeyer. “Relatório da 4ª Seção de Obras Públicas da Província do Rio de Janeiro apresentado à respectiva diretoria em agosto de 1837”. Rio de Janeiro: Imprensa Americana de I.F. da Costa, 1837). Repetindo principalmente Aires de Casal e Pizarro e Araujo, Teixeira de Mello diz, em fins do século XIX, que o rio Muriaé era o segundo maior do município e derivava do étimo indígena “buié” ou talvez mais propriamente “mbuié”, significado que o autor confessa desconhecer (MELLO, José Alexandre Teixeira de. “Campos dos Goitacases em 1881”. Rio de Janeiro: Laemmert, 1886). Aliás, a origem etimológica do nome do rio nunca foi elucidada. Couto Reis sustentava ser um termo português corrompido: “… composto do verbo morrer, e do advérbio aí: os índios, que antigamente se queriam catequizar, e principiavam a aldear-se na margem deste rio, assaz pestífero, aonde muitos morreram, já sabendo alguma coisa do nosso idioma, sempre conservaram os ásperos acentos da sua língua. Quando algum português lhes perguntava por alguns de seus parentes, que já eram falecidos, respondiam moriahe para explicar morreu aí. Assim se ficou chamando o rio Muriaé (COUTO REIS, Manoel Martins do. “Manuscritos de Manoel Martins do Couto Reis – 1785: Descrição geográfica, política e cronográfica do Distrito dos Campos Goitacazes”. Campos dos Goytacazes: Fundação Cultural Jornalista Oswaldo Lima; Rio de Janeiro: Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro, 2011).

Rio Muriaé em Itaperuna

            Alberto Ribeiro Lamego, por sua vez, levanta a hipótese de derivar a palavra de “Meruim-hu”, rio dos mosquitos, na tentativa de explicar por que a região era um foco de doenças transmissíveis (LAMEGO, Alberto Ribeiro. “A planície do solar e da senzala”. Rio de Janeiro: Católica, 1934). Só que, tanto os puris quanto os colonos, ignoravam a transmissão de certas moléstias pela picada de insetos. Voltando a Teixeira de Melo, depois de explicar que o rio atravessa S. Paulo do Muriaé, Vargem Grande e Laje e que entra pela freguesia de Natividade, recebendo como afluente o córrego de Carqueja e o rio Morto, completava ele: “Antigamente, antes das grandes derrubadas para o estabelecimento de fazendas de açúcar, eram as águas do Muriaé prejudiciais à saúde, pela imensa quantidade de ‘timbó’ e ‘guaratimbó’ que lhe infestavam as margens e envenenavam a água e de que hoje nem há notícia” (MELLO, José Alexandre Teixeira de. “Campos dos Goitacases em 1881”. Rio de Janeiro: Laemmert, 1886).  

Rio Pomba

            Pouco se tem dito a respeito do rio Pomba, segundo maior afluente do Paraíba no norte-noroeste fluminense. Seu leito é todo talhado em rocha, com nascente no sistema Mantiqueira. Couto Reis confessa não tê-lo examinado, marcando uma nova viagem para conhecê-lo. Contudo, ele encontrou embaraços que impediram a excursão. Por isso, o rio não foi assinalado no mapa detalhado que traçou. São exíguos os seus comentários acerca dele: confluência com o Paraíba 11 léguas acima da barra do Muriaé, nascente nas serras vizinhas das Minas Gerais, aumento de volume com o concurso de muitos córregos, leito adjacente à Serra da Frexeira, navegabilidade, acesso às minas por terra ou por água até os desníveis do curso e nada mais (COUTO REIS, Manoel Martins do. “Manuscritos de Manoel Martins do Couto Reis – 1785: Descrição geográfica, política e cronográfica do Distrito dos Campos Goitacazes”. Campos dos Goytacazes: Fundação Cultural Jornalista Oswaldo Lima; Rio de Janeiro: Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro, 2011). Dele, Bellegarde faz pequena referência, informando que passa pelo lado ocidental da Serra das Frexeiras e conta com margens quase inabitadas dentro do território da Província do Rio de Janeiro (BELLEGARDE, Henrique Luiz de Niemeyer. “Relatório da 4ª Seção de Obras Públicas da Província do Rio de Janeiro apresentado à respectiva Diretoria em agosto de 1837”. Rio de Janeiro: Imprensa Americana de I. F. da Costa, 1837).

Rio Pomba em antiga foto

            Resta-nos, assim, o relato do naturalista alemão Hermann Burmeister, que empreendeu viagem científica do Rio de Janeiro até Minas Gerais, passando por Nova Friburgo, Cantagalo e São José de Leonissa da Aldeia da Pedra (atual Itaocara) e subindo o rio Pomba em quase todo seu curso. Nas suas anotações de viagem, comenta que “… a maioria dos rios brasileiros dá impressão mais majestosa [que os rios europeus], devido ao seu leito rochoso, que, não atingindo grande profundidade, força o curso a tomar maior largura (…) O rio da Pomba jamais foi navegado senão por canoas; nunca encontrei, em todo o meu trajeto, nenhum barco ou navio de qualquer espécie.” Pinta uma bela paisagem florestal durante todo o trajeto, já devastada aqui e ali para a extração de madeira e para a prática de atividades econômicas. Atina, finalmente com a razão do nome dado ao rio: “Vimos também muitas pombas selvagens, em geral a ‘Columba rufaxilla’ Wagl muito tímidas, porém, fugiam tão depressa que não podíamos colocá-las sob nossa pontaria. Foi então que me lembrei do nome do rio, evidentemente devido à frequência das pombas nessa região.” (BURMEISTER, Hermann. “Viagem ao Brasil através das Províncias do Rio de Janeiro e Minas Gerais”. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1980).

Outros rios da bacia no seu curso final

            Quanto aos outros rios formadores da bacia, no âmbito da região norte-noroeste fluminense, são escassas as informações fornecidas por memorialistas e viajantes. Couto Reis menciona, de passagem, os rios do Gentio, também chamado de Dois Rios ou Grande, do Colégio ou dos Algodoeiros (que desce da serra e desemboca no Paraíba) e Preto (COUTO REIS, Manoel Martins do. “Manuscritos de Manoel Martins do Couto Reis – 1785: Descrição geográfica, política e cronográfica do Distrito dos Campos Goitacazes”. Campos dos Goytacazes: Fundação Cultural Jornalista Oswaldo Lima; Rio de Janeiro: Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro, 2011). Também Bellegarde, no seu sucinto relatório, registra o Dois Rios, formado pelo grande de Cantagalo e pelo Negro, que se unem a quatro léguas acima da barra que aquele faz no Paraíba, contando com margens pouco habitadas (BELLEGARDE, Henrique Luiz de Niemeyer. “Relatório da 4ª Seção de Obras Públicas da Província do Rio de Janeiro apresentado à respectiva Diretoria em agosto de 1837”. Rio de Janeiro: Imprensa Americana de I. F. da Costa, 1837).

Rio do Colégio

            O tempo passou e uma economia predatória transformou os rios da região. A bacia do Paraíba do Sul foi a mais afetada. Primeiramente, as densas florestas que se estendiam da nascente à área onde se ergue Guarus foram derrubadas para fornecer lenha, madeira, abrir áreas para a agricultura, a pecuária e para as cidades. O solo descoberto ficou mais sujeito à erosão. As chuvas e os ventos varreram terras para os leitos dos rios, que foram se tornando assoreados. Insumos químicos usados na agropecuária caíram nos rios. As cidades deram um contributo colossal para a poluição com o lançamento de esgoto e lixo. As margens sofreram aterros. As barragens alteraram o regime hídrico. Hoje, o menor rio da bacia do Paraíba do Sul tem algum tipo de barramento para gerar energia elétrica e para acumular água, dificultando a circulação de espécies animais que migram. Vazamentos em indústrias causaram crises agudas de poluição. A intervenção maior, contudo, foi a barragem de Santa Cecília, que desviou 2/3 do Paraíba do Sul para o rio Guandu, a fim de atender à demanda de água pelas cidades que formam o grande Rio, hoje com cerca de 9 milhões. Os efeitos se fazem sentir na foz do Paraíba do Sul no mar. Hoje, ela fica fechada a maior parte do ano.

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