- Historiador com doutorado na Universidade Federal do Rio de Janeiro, colaborador com a imprensa e autor de 26 livros.
De longa data, a bacia do Paraíba do Sul é uma das mais conhecidas do Brasil. Seu rio principal serviu de estrada para a penetração e conquista do interior. Para São Paulo e Minas Gerais ou dessas duas unidades político-administrativas da Colônia, do Império e da República em direção ao Rio de Janeiro, a bacia foi, durante muito tempo, a porta de entrada e de saída.
Tanto o rio principal quanto seus afluentes mereceram abundantes registros escritos e pictográficos de viajantes, naturalistas, literatos e artistas. Vários autores estrangeiros compararam o rio Paraíba do Sul ao rio Reno. O naturalista alemão Maximiliano de Wied-Neuwied deixou, em 1815, um lindo desenho do rio em São Fidélis (“Viagem ao Brasil”. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1989).
Victor Frond, desenhando para Charles Ribeyrolles, registrou o Paraíba do Sul em São Fidélis e Campos em meados do século XIX (“Brasil pitoresco” 2º vol. Belo Horizonte/Itatiaia; São Paulo/Edusp, 1980).
Não se conhece registro pictográfico do rio Muriaé, último afluente do Paraíba do Sul, mas três anotações sobre ele no passado são famosas: a do cartógrafo da infantaria Manoel Martins do Couto Reis, entre 1783-85, a do naturalista amador Antonio Muniz de Souza (“Viagens e observações de um brasileiro”. Salvador: IGHB, 2000), entre 1826-27, e a do historiador José Alexandre Teixeira de Mello (“Campos dos Goytacazes em 1881”. Rio de Janeiro: Laemmert, 1886). O rio Pomba teve em Hermann Burmeister seu grande admirador em meados do século XIX (“Viagem ao Brasil através das Províncias do Rio de Janeiro e Minas Gerais”. Belo Horizonte/Itatiaia; São Paulo/Edusp, 1980). O rio Paraibuna de Minas foi desenhado pelo alemão João Maurício Rugendas (“Viagem pitoresca através do Brasil”. Belo Horizonte: Itatiaia, 1998). O trecho paulista do rio recebeu a ilustre visita dos naturalistas alemães Martius e Spix.
Mesmo sendo muito conhecida, a bacia do Paraíba do Sul tem áreas com pouca informação. Nos meus estudos de história ambiental regional, uma delas é a do rio Dois Rios. A cidade de Nova Friburgo situa-se na sua bacia, mas nas margens do rio Bengalas, um de seus afluentes. No conjunto, a bacia conta com poucas informações ao longo do tempo. A mais antiga que conheço vem de Manoel Martins do Couto Reis, no último quartel do século XVIII. Ele foi designado pelo vice-rei Luís de Vasconcelos e Souza para levantar um mapa do Distrito dos Campos dos Goytacazes, cujos limites eram os rios Macaé e Itabapoana. O Distrito contava com dois núcleos urbanos originais: Campos e São João da Barra. Era bem conhecido na planície fluviomarinha e nos tabuleiros, mas bastante ignorado na zona serrana.
Na cartografia dos séculos XVII e XVIII, a zona serrana do Rio de Janeiro aparecia como um grande vazio ocupado, segundo os habitantes das partes baixas, por índios ferozes. Foi assim que Couto Reis considerou a serra. Havia, na zona serrana, apenas o núcleo de Cantagalo. Nova Friburgo só vai ser fundada em 1818. Couto Reis subiu o rio Paraíba do Sul com receio. O cartógrafo alcançou a barra do Pomba, mas não explorou o rio por causa das condições climáticas. Ele não conseguiu vencer a correnteza. Tentou uma segunda vez, também em vão.
Nessa incursão, ele examinou a foz do rio Dois Rios, sobre o qual escreveu: “O Rio do Gentio – chamado vulgarmente os dois rios por equivocar-se a sua barra com um braço do Paraíba, que abrange uma ilha e faz semelhança muito própria ao conjunto, ou concorrência de dois rios – tem suas origens no centro da cordilheira de onde emanam os acima nomeados, e faz também barra no Paraíba na margem austral. Admite navegação, porém, sem uso por ser todo despovoado.”
De fato, a defluência do rio Dois Rios no Paraíba do Sul se processa por uma intrincada rede fluvial formadora de ilhas. Vista de certos pontos, tem-se a impressão de que, de fato, existem dois rios. Talvez essa seja a mais remota explicação para o nome do rio que desce da Serra do Mar pela vertente direita até alcançar o Paraíba do Sul.
O nome original do rio era do Gentio, por ser povoado por índios ainda não integrados à cultura europeia. Ele anota em seu mapa, junto à desembocadura do rio, uma observação: “Aqui haviam moradias de índios coroados que depois se concentraram na nova aldeia.” Ele se referia a São Fidélis como a nova aldeia. Ela foi fundada em 1780 como redução indígena, isto é, núcleo destinado a reunir índios para a catequese e para protegê-los do ataque dos brancos.
Como o rio do Gentio ou Grande ou Dois Rios, os rios Piabanha e do Colégio também nascem na e descem da Serra do Mar pela vertente interior até alcançar o rio Paraíba do Sul. O primeiro é bastante conhecido por erguer-se às suas margens o núcleo urbano de Petrópolis, na primeira metade do século XIX, local de veraneio da família imperial.
O rio do Colégio talvez merecesse desconhecimento semelhante ao rio Dois Rios se sua foz não se encontrasse no caminho entre Campos e São Fidélis, bastante percorrido.
Na terceira década do século XIX, o major Henrique Luiz de Niemeyer Bellegarde o definiu nos seguintes termos: “O rio denominado Dois Rios é formado pelo grande de Cantagalo e pelo Negro, que se juntam a 4 léguas acima da barra que aquele faz no Paraíba 8¹/² acima de Campos; pouca habitação há em suas ribas.” (“Relatório da 4ª Seção de Obras Públicas da Província do Rio de Janeiro apresentado à respectiva diretoria em agosto de 1837”. Rio de Janeiro: Imprensa Americana de I. F. da Costa, 1837).
Por último, mas não por fim, o “Dicionário geográfico, histórico e descritivo do Império do Brasil”, magnífica obra de J.C.R. Milliet de Saint-Adolphe explica “Grande. Pequeno rio da província do Rio de Janeiro, no distrito da vila de Cantagalo. Nasce na vertente setentrional da cordilheira dos Órgãos, e correndo para o nordeste separa o distrito de Cantagalo do de Nova Friburgo, e no cabo dum curso de 5 para 6 léguas, que se navega com mais ou menos facilidade em canoa, ajunta-se com o rio Bengalas, 5 léguas no nordeste da vila de Cantagalo. Unidos estes dois rios inclinam-se para o norte obra de 8 léguas, apelidando-se indiscriminadamente ora Grande ora Bengalas até se ajuntarem pela margem direita com o Paraíba, abaixo da aldeia de São José de Leonissa.” (Paris: Vª J. -P. Aillaud, Guillard e Cª, 1863). Esta aldeia receberia o nome de Itaocara posteriormente. Saint-Adolphe era francês e viveu 26 anos no Brasil.
Como, desde 1978, situo-me no que hoje se conhece como história-mundo, procuro sempre articular a história local e regional com a história mundial, que está sendo proposta atualmente para a compreensão de um mundo globalizado. Vejo entendimentos questionáveis nela, como comparar China e Europa na época da primeira revolução industrial. Parece que os historiadores não levam verdadeiramente em conta o papel do capitalismo para explicar o “triunfo” do ocidente, que promoveu a globalização do mundo de forma nada pacífica.
Desde a mais antiga descrição do rio Dois Rios, o objetivo é a integração de regiões remotas e ignotas às partes do Brasil já ocidentalizadas. No caso de Couto Reis, a intenção é mapear para conhecer e dominar o território, os índios e os próprios descendentes de europeus recalcitrantes às autoridades coloniais. A intenção dos naturalistas, ainda que inconsciente, era o conhecimento científico da natureza brasileira para integrá-lo ao conhecimento europeu.
Mas a globalização ocidental não se efetua apenas por meio do conhecimento. Ela se traduz principalmente por práticas. A grande floresta ombrófila e estacional encontrada por Couto Reis na foz do rio do Gentio em 1784 e por Burmeister em Nova Friburgo e ao longo do rio Pomba foi derrubada e substituída pela agricultura e por pastagens. Embora pouco urbanizada, a bacia dos Dois Rios enfrenta problemas gerados por núcleos urbanos, como a poluição do solo, das águas e do ar. Tomemos o caso de Nova Friburgo. Trata-se do maior núcleo urbano da bacia. Como toda cidade de padrão ocidental, ela cresceu sobre áreas de floresta. Galgou encostas, canalizou o rio Bengalas, poluiu o solo e a água, deixando problemas quase insolúveis. O quase fica por conta dos limites impostos por uma economia que cria os problemas.