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Arthur Soffiati

- Historiador com doutorado na Universidade Federal do Rio de Janeiro, colaborador com a imprensa e autor de 26 livros.

Rio Dois Rios

De longa data, a bacia do Paraíba do Sul é uma das mais conhecidas do Brasil. Seu rio principal serviu de estrada para a penetração e conquista do interior. Para São Paulo e Minas Gerais ou dessas duas unidades político-administrativas da Colônia, do Império e da República em direção ao Rio de Janeiro, a bacia foi, durante muito tempo, a porta de entrada e de saída.

Tanto o rio principal quanto seus afluentes mereceram abundantes registros escritos e pictográficos de viajantes, naturalistas, literatos e artistas. Vários autores estrangeiros compararam o rio Paraíba do Sul ao rio Reno. O naturalista alemão Maximiliano de Wied-Neuwied deixou, em 1815, um lindo desenho do rio em São Fidélis (“Viagem ao Brasil”. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1989).

Rio Paraíba do Sul em São Fidélis pela pena de Maximiliano de Wied-Neuwied, em 1815
Rio Paraíba do Sul em São Fidélis pela pena de Maximiliano de Wied-Neuwied, em 1815

Victor Frond, desenhando para Charles Ribeyrolles, registrou o Paraíba do Sul em São Fidélis e Campos em meados do século XIX (“Brasil pitoresco” 2º vol. Belo Horizonte/Itatiaia; São Paulo/Edusp, 1980).

Rio Paraíba do Sul em São Fidélis segundo Victor Frond, meados do século XIX
Rio Paraíba do Sul em São Fidélis segundo Victor Frond, meados do século XIX

Não se conhece registro pictográfico do rio Muriaé, último afluente do Paraíba do Sul, mas três anotações sobre ele no passado são famosas: a do cartógrafo da infantaria Manoel Martins do Couto Reis, entre 1783-85, a do naturalista amador Antonio Muniz de Souza (“Viagens e observações de um brasileiro”. Salvador: IGHB, 2000), entre 1826-27, e a do historiador José Alexandre Teixeira de Mello (“Campos dos Goytacazes em 1881”. Rio de Janeiro: Laemmert, 1886). O rio Pomba teve em Hermann Burmeister seu grande admirador em meados do século XIX (“Viagem ao Brasil através das Províncias do Rio de Janeiro e Minas Gerais”. Belo Horizonte/Itatiaia; São Paulo/Edusp, 1980). O rio Paraibuna de Minas foi desenhado pelo alemão João Maurício Rugendas (“Viagem pitoresca através do Brasil”. Belo Horizonte: Itatiaia, 1998). O trecho paulista do rio recebeu a ilustre visita dos naturalistas alemães Martius e Spix.

Rio Pomba segundo Hermann Burmeister, em meados do século XIX
Rio Pomba segundo Hermann Burmeister, em meados do século XIX

Mesmo sendo muito conhecida, a bacia do Paraíba do Sul tem áreas com pouca informação. Nos meus estudos de história ambiental regional, uma delas é a do rio Dois Rios. A cidade de Nova Friburgo situa-se na sua bacia, mas nas margens do rio Bengalas, um de seus afluentes. No conjunto, a bacia conta com poucas informações ao longo do tempo. A mais antiga que conheço vem de Manoel Martins do Couto Reis, no último quartel do século XVIII. Ele foi designado pelo vice-rei Luís de Vasconcelos e Souza para levantar um mapa do Distrito dos Campos dos Goytacazes, cujos limites eram os rios Macaé e Itabapoana. O Distrito contava com dois núcleos urbanos originais: Campos e São João da Barra. Era bem conhecido na planície fluviomarinha e nos tabuleiros, mas bastante ignorado na zona serrana.

Na cartografia dos séculos XVII e XVIII, a zona serrana do Rio de Janeiro aparecia como um grande vazio ocupado, segundo os habitantes das partes baixas, por índios ferozes. Foi assim que Couto Reis considerou a serra. Havia, na zona serrana, apenas o núcleo de Cantagalo. Nova Friburgo só vai ser fundada em 1818. Couto Reis subiu o rio Paraíba do Sul com receio. O cartógrafo alcançou a barra do Pomba, mas não explorou o rio por causa das condições climáticas. Ele não conseguiu vencer a correnteza. Tentou uma segunda vez, também em vão.

Floresta nos arredores de Nova Friburgo segundo Hermann Burmeister
Floresta nos arredores de Nova Friburgo segundo Hermann Burmeister

Nessa incursão, ele examinou a foz do rio Dois Rios, sobre o qual escreveu: “O Rio do Gentio – chamado vulgarmente os dois rios por equivocar-se a sua barra com um braço do Paraíba, que abrange uma ilha e faz semelhança muito própria ao conjunto, ou concorrência de dois rios – tem suas origens no centro da cordilheira de onde emanam os acima nomeados, e faz também barra no Paraíba na margem austral. Admite navegação, porém, sem uso por ser todo despovoado.”

Rio do Gentio no mapa de Manoel Martins do Couto Reis (1785)
Rio do Gentio no mapa de Manoel Martins do Couto Reis (1785)

De fato, a defluência do rio Dois Rios no Paraíba do Sul se processa por uma intrincada rede fluvial formadora de ilhas. Vista de certos pontos, tem-se a impressão de que, de fato, existem dois rios. Talvez essa seja a mais remota explicação para o nome do rio que desce da Serra do Mar pela vertente direita até alcançar o Paraíba do Sul.

Encontro do rio Dois Rios com o Paraíba do Sul. Imagem do Google Earth

O nome original do rio era do Gentio, por ser povoado por índios ainda não integrados à cultura europeia. Ele anota em seu mapa, junto à desembocadura do rio, uma observação: “Aqui haviam moradias de índios coroados que depois se concentraram na nova aldeia.” Ele se referia a São Fidélis como a nova aldeia. Ela foi fundada em 1780 como redução indígena, isto é, núcleo destinado a reunir índios para a catequese e para protegê-los do ataque dos brancos.

Como o rio do Gentio ou Grande ou Dois Rios, os rios Piabanha e do Colégio também nascem na e descem da Serra do Mar pela vertente interior até alcançar o rio Paraíba do Sul. O primeiro é bastante conhecido por erguer-se às suas margens o núcleo urbano de Petrópolis, na primeira metade do século XIX, local de veraneio da família imperial.

O rio do Colégio talvez merecesse desconhecimento semelhante ao rio Dois Rios se sua foz não se encontrasse no caminho entre Campos e São Fidélis, bastante percorrido.

Na terceira década do século XIX, o major Henrique Luiz de Niemeyer Bellegarde o definiu nos seguintes termos: “O rio denominado Dois Rios é formado pelo grande de Cantagalo e pelo Negro, que se juntam a 4 léguas acima da barra que aquele faz no Paraíba 8¹/² acima de Campos; pouca habitação há em suas ribas.” (“Relatório da 4ª Seção de Obras Públicas da Província do Rio de Janeiro apresentado à respectiva diretoria em agosto de 1837”. Rio de Janeiro: Imprensa Americana de I. F. da Costa, 1837).

Rio Paraibuna de Minas, segundo Rugendas

Por último, mas não por fim, o “Dicionário geográfico, histórico e descritivo do Império do Brasil”, magnífica obra de J.C.R. Milliet de Saint-Adolphe explica “Grande. Pequeno rio da província do Rio de Janeiro, no distrito da vila de Cantagalo. Nasce na vertente setentrional da cordilheira dos Órgãos, e correndo para o nordeste separa o distrito de Cantagalo do de Nova Friburgo, e no cabo dum curso de 5 para 6 léguas, que se navega com mais ou menos facilidade em canoa, ajunta-se com o rio Bengalas, 5 léguas no nordeste da vila de Cantagalo. Unidos estes dois rios inclinam-se para o norte obra de 8 léguas, apelidando-se indiscriminadamente ora Grande ora Bengalas até se ajuntarem pela margem direita com o Paraíba, abaixo da aldeia de São José de Leonissa.” (Paris: Vª J. -P. Aillaud, Guillard e Cª, 1863). Esta aldeia receberia o nome de Itaocara posteriormente. Saint-Adolphe era francês e viveu 26 anos no Brasil.

Rio Dois Rios em São Fidélis. Foto: Arthur

Como, desde 1978, situo-me no que hoje se conhece como história-mundo, procuro sempre articular a história local e regional com a história mundial, que está sendo proposta atualmente para a compreensão de um mundo globalizado. Vejo entendimentos questionáveis nela, como comparar China e Europa na época da primeira revolução industrial. Parece que os historiadores não levam verdadeiramente em conta o papel do capitalismo para explicar o “triunfo” do ocidente, que promoveu a globalização do mundo de forma nada pacífica.

Desde a mais antiga descrição do rio Dois Rios, o objetivo é a integração de regiões remotas e ignotas às partes do Brasil já ocidentalizadas. No caso de Couto Reis, a intenção é mapear para conhecer e dominar o território, os índios e os próprios descendentes de europeus recalcitrantes às autoridades coloniais. A intenção dos naturalistas, ainda que inconsciente, era o conhecimento científico da natureza brasileira para integrá-lo ao conhecimento europeu.

Mas a globalização ocidental não se efetua apenas por meio do conhecimento. Ela se traduz principalmente por práticas. A grande floresta ombrófila e estacional encontrada por Couto Reis na foz do rio do Gentio em 1784 e por Burmeister em Nova Friburgo e ao longo do rio Pomba foi derrubada e substituída pela agricultura e por pastagens. Embora pouco urbanizada, a bacia dos Dois Rios enfrenta problemas gerados por núcleos urbanos, como a poluição do solo, das águas e do ar. Tomemos o caso de Nova Friburgo. Trata-se do maior núcleo urbano da bacia. Como toda cidade de padrão ocidental, ela cresceu sobre áreas de floresta. Galgou encostas, canalizou o rio Bengalas, poluiu o solo e a água, deixando problemas quase insolúveis. O quase fica por conta dos limites impostos por uma economia que cria os problemas.

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