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Arthur Soffiati

Arthur Soffiati

- Historiador com doutorado na Universidade Federal do Rio de Janeiro, colaborador com a imprensa e autor de 26 livros.

Mangais no estuário do rio das Pérolas

Diariamente, leio o jornal “Macau Hoje”, publicado no antigo domínio português na China, uma pequena colônia na foz do rio das Pérolas, na margem oposta em que ergueu-se Hong-Kong. Ela foi devolvida à República da China Popular em 1999, que lhe conferiu o status de Região Administrativa Especial. Macau é a Las Vegas do oriente. Em plena China, com um regime político de partido único, onde não existe a liberdade como conhecida no ocidente, Macau vive do jogo de azar. Ele é a maior fonte de renda da RAEM (Região Administrativa Especial de Macau). Macau sofreu maciça invasão pacífica de chineses depois de voltar a pertencer totalmente à China. “Macau Hoje” resiste como jornal em língua portuguesa em meio a chineses. Os jornais de Goa, a capital portuguesa do Índico em tempos idos, não são mais publicados em português depois de sua reintegração à Índia em 1961. Recentemente, um jornal goês voltou a publicar artigo dominical em português. E as marcas de Portugal são ainda fortes na arquitetura principalmente. Mas tendem a ser engolidas, mesmo com todas as iniciativas de proteção por parte da Unesco. Na culinária, as marcas também são acentuadas.

Mapa de Macau na foz do rio das Pérolas

Em edição recente do jornal, foi estampada uma reportagem intitulada “Águas mais calmas”, assinada por Andreia Sofia Silva. Consultei também (pela primeira vez) a “Revista Macau”, órgão chinês de divulgação com edição em português. No mesmo dia, foi publicada nela reportagem sobre os manguezais de Macau com o título de “Mangais, uma riqueza escondida de Macau”, redigida por Paulo Barbosa. Em português, o ecossistema é conhecida como mangue, mangal, manguezal. Em espanhol é manglar. Em francês e inglês, é mangrove, apenas com pronuncia diferente.

Macau à noite

As duas reportagens referem-se a estudos que a Universidade de São José está conduzindo sobre os mangais de Macau. A matéria informa que mangal é um “ecossistema que existe em Macau”, como se ele fosse bastante desconhecido da população. O mangue, de fato, é um ambiente que comumente não interessa às pessoas pelo seu aspecto. À primeira vista, sua feição lamacenta passa a impressão de lugar fétido e infecto. Pois é exatamente o contrário. A equipe da Universidade, sob a direção de Karen Tagulao e Cristina Calheiros, tenta mostrar o que talvez se busque em todo o mundo tropical: o mangue desempenha papel ecológico de suma importância. Ele protege a zona costeira da erosão e dos fortes ventos, no oriente conhecidos como tufões. “Os mangais não ajudam apenas a limpar a água mas também acumulam dióxido de carbono. São muito importantes na mitigação das alterações climáticas. No ano passado o projeto continuou a desenvolver-se e agora o nosso foco é analisar como os mangais podem reduzir o impacto das ondas em caso de tempestade, por exemplo durante os tufões”, explica Tangulo. É estranho que se faça esse estudo pela primeira vez em Macau. As duas autoras defendem a importância de reflorestar a costa de Macau com mangais, mostrando que é mais econômico valer-se de bosques de mangue que de paredões para conter ressacas e ventos.

População do mangue Acanthus ilicifolius em meio à cidade de Macau

As mudanças climáticas estão ajudando a valorizar-se o que antes era desprezado. Ventos e ondas estão se tornando mais frequentes e mais intensos. Um paredão não é resiliente como um manguezal. Se destruído por tufão ou ressaca, um paredão não se recupera sozinho. O manguezal sim. Ele é vivo. As autoras mencionam também a capacidade que o mangal tem de depurar as águas poluídas por nitrogênio e fósforo, dois grandes componentes da crise ambiental da atualidade muito pouco conhecidos. “… a concentração de nutrientes na água é menor em áreas com mangais em comparação com áreas sem manguezais”, explicam as pesquisadoras.

População de samambaia-do-brejo em Macau

O projeto da Universidade de São José começou em 2010. A partir de 2012, passou a envolver escolas naquilo que, por aqui, conhecemos como educação ambiental. Segundo elas, há duas zonas de mangais em Macau: a maior fica na reserva ecológica do Cotai, que faz fronteira com a Ilha da Montanha e é gerida pela Direcção dos Serviços de Protecção Ambiental. O outro mangal cresceu junto ao complexo residencial Jardins do Oceano e está sendo replantado pelo Instituto para os Assuntos Municipais. Anteriormente, o mangal estendia-se pela costa da Taipa, na zona onde estão as Casas-Museu, mas o desenvolvimento do grande aterro de Cotai levou ao deslocamento dessa zona, dado que os mangais necessitam de água fresca. Karen Tagulao considera que os dois departamentos públicos gerentes das zonas de mangais estão fazendo um bom trabalho de conservação.

Avicennia marina

Apela-se para que o mangal de Cotai seja preservado. A palavra Cotai deriva das inicias de Coloane (Co) e de Taipa (Tai). Seu nome oficial é “Zona do Aterro de COTAI”. Trata-se de um aterro ligando as ilhas de Coloane e Taipa, que, a rigor, não são mais ilhas. A nova extensão de terra é muito construída. Por aí, já se pode avaliar a dificuldade de reflorestar a costa de Macau com plantas de mangue. Karem Tangulo não tem dúvidas do interesse do governo em proteger os mangais. Cientistas têm um lado político. Publicamente, fingem acreditar nas autoridades governamentais e nos empresários até como forma de sensibilizá-los para a proteção. Ela ressalta a importância de reflorestar a costa da cidade. Neste caso, é preciso encontrar terreno para tanto. Ela observa também que a área de mangais tem se mantido estável nos últimos dez anos, mas Cotai está se expandindo. É o velho conflito entre economia de mercado e proteção de ambientes naturais.

Kandelia obovata em Macau

Em 2016, publiquei um artigo na revista Cidade de Cabo Frio sobre os manguezais do estuário do rio das Pérolas nas adjacências de Macau. Nada de mangais de Macau. As espécies de manguezais são mais antigas que a humanidade. Elas não existem para ornar ou atrapalhar nossa vida. Nós é que temos atrapalhado a vida das demais espécies vegetais e animais da Terra. Busquei artigos em língua estrangeira. Encontrei poucos. Mesmo assim, fiz um levantamento das espécies típicas de manguezal no estuário do rio sem nunca tê-lo visitado. Surpreendi-me por encontrar as mesmas espécies que a equipe de pesquisa da Universidade de São José encontrou em trabalho de campo.

Sonneratia apetala

São elas Avicennia marina do gênero Avicennia, bem representado no Brasil por duas espécies. A Avicennia marina é extremamente resistente. Sobreviveu ao petróleo lançado como arma de guerra por Saddan Houssein na Guerra do Golfo, em 1991. Outra é a samambaia-do-brejo (Acrostichum aureum), que não é uma espécie exclusiva de mangal. Na verdade, ela é uma planta bastante oportunista que cresce em área onde o manguezal foi cortado, impedindo por sombreamento que as espécies exclusivas de mangue retornem. A espécie ocorre largamente no Brasil e é a que mais nos une aos mangais do estuário do rio das Pérolas.

Aegiceras corniculatum

A Sonneratia apetala é uma espécie arbórea típica de mangue encontrada na parte oriental do planeta. Muito comum nos manguezais da Índia e Bangladesh. Kandelia obovata integra o gênero Rhizophora, com duas ou três espécies na costa atlântica da América. É fantástico saber que parentes dela estão entre nós sem que os trouxéssemos, como são os casos da banana, da jaca e do coco, pelo menos, transportadas pelos europeus da Ásia para a América. É notável saber que ela está no oriente por conta própria, não como o caju, a batata ou o abacaxi, levados pelos europeus da América para outras partes do mundo. Aegiceras corniculatum tem sua distribuição nas zonas costeiras e estuários que vão desde a Índia ao sul da China, Nova Guiné e Austrália. Tem porte arbustivo, alcançando até 7 metros de altura. Acanthus ilicifolius, comumente conhecido como acanto com folhas de azevinho, azevinho do mar e mangue sagrado, é uma espécie herbácea podendo alcançar porte arbóreo. É nativa da Austrália, Australásia e sudeste da Ásia. Tem propriedades medicinais.

Acanthus ilicifolius

Já as espécies animais encontradas pela pesquisa da Universidade de São José não parecem ser, na maioria delas, típicas de mangais. Boleophthalmus pectinirostris é um peixe com hábito anfíbio que não vive no mangue com exclusividade. Periophthalmus modestus idem. É conhecido como peixe-lúpulo ou peixe-saltador. Não se limita ao mangue. Uca chlorophthalmus crassipes é um pequeno caranguejo, sendo os machos possuidores de uma das pinças bem maior que a outra. Costumam viver em mangais e na zona entre marés, em praias arenosas protegidas, em baías e em estuários. Parece ser uma espécie mais fixa de manguezais, mas não exclusiva. Vespa bicolor pode frequentar os mangais, mas não é exclusiva dele. Ellobium chinensis é um caramujo que deve frequentar os mangais. Cassidula plecotrematoides também é um caramujo. Clithon faba é um caramujinho.

Uca chlorophthalmus crassipes

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