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Arthur Soffiati

Arthur Soffiati

- Historiador com doutorado na Universidade Federal do Rio de Janeiro, colaborador com a imprensa e autor de 26 livros.

Lagoa do Campelo

Tracemos um breve perfil da lagoa do Campelo, a maior na margem esquerda do Rio Paraíba do Sul. Antes da formação do setor setentrional da restinga, vários pequenos cursos d’água desciam da unidade norte dos tabuleiros (com idade estimada em 5 milhões anos) e desembocavam no mar. O volume hídrico era então bem maior do que o atual, pois os tabuleiros e a zona serrana da margem esquerda do Paraíba do Sul eram recobertos por mata atlântica estacional semidecidual.

A zona serrana apresenta diferenças nas duas margens do rio Paraíba do Sul: na margem direita, a umidade é maior porque as nuvens formadas sobre o oceano e sopradas para o continente são retidas pela Serra do Mar (Imbé) e se precipitam na forma de chuva. Na margem esquerda, as elevações são menores, permitindo que as nuvens as ultrapassem impulsionadas pelos ventos. A grande enchente de 2008 no eixo da lagoa Feia derivou de enormes e atípicas precipitações pluviométricas na vertente atlântica da Serra do Mar. A calha dos pequenos rios que desembocam no rio Imbé, a calha desse rio coletor, a caixa da lagoa de Cima e da lagoa Feia, a calha do rio Ururaí e do canal da Flecha não conseguiram absorver e dar vazão ao volume de água precipitada. Essa enchente atípica talvez seja das poucas provocadas por chuvas caídas no trecho final do Paraíba do Sul. As outras são causadas por águas provenientes das Zonas da Mata e Serrana e da bacia do Paraíba do Sul como um todo. Não há, nos registros históricos, notícia de chuva com intensidade daquela que ocorreu em 2008/2009 no trecho final do rio. Daí a diferença das formações vegetais nativas de ambas as margens: a maior umidade da margem direita propicia o desenvolvimento de mata ombrófila densa, enquanto que, na margem esquerda, a umidade mais reduzida leva a mata atlântica a se adaptar na forma de mata estacional semidecidual. Ainda há fragmentos da vegetação nativa original em Morro do Coco. Nos tabuleiros, registramos os fragmentos das matas de Angra (junto à lagoa de Taquaruçu), do Bom Jesus (no entorno da lagoa do Fogo), de Funil (na extremidade norte do Assentamento Zumbi dos Palmares), da antiga mata do Carvão, hoje protegida pela Estação Ecológica de Guaxindiba (na bacia do Rio Guaxindiba), na extremidade norte da lagoa do Campelo (mata de restinga) e na foz do rio Paraíba do Sul (manguezal).

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Unidades geológicas da margem esquerda do rio Paraíba do Sul no seu estirão final. Fragmentos de vegetação nativa: X- Mata Estacional Semidecidual; X- Mata de restinga; X- Manguezal. Base cartográfica: Alberto Ribeiro Lamego (1954)

Quando os pequenos cursos dos tabuleiros setentrionais foram barrados pela restinga, suas águas se alastraram, dando origem a lagoas alongadas em forma de árvore (dendrítica). Esses antigos córregos não faziam parte, então, da bacia do Paraíba do Sul. Eles desembocavam no mar. Tais pequenos cursos d’água teriam o porte do rio da Onça, que desembocava no rio Muriaé depois de formar a lagoa da Onça.

O bloqueio dos córregos nos tabuleiros pela restinga não foi total. Restou uma depressão entre as duas formações geológicas que funcionou como dreno. Com o avanço do continente pela deposição de areia por ação do mar e do Paraíba do Sul, novas áreas úmidas foram se formando, agora com orientação paralela à linha da costa, e não mais com orientação perpendicular à costa, como as lagoas de tabuleiros. As principais depressões na restinga são a lagoa do Campelo (englobando, originalmente, a lagoa do Arisco e o brejo da Cataia), os brejos de Cacimbas, dos Farias, dos Cocos e do Mangue Seco, as lagoas do Comércio, do Meio, da Taboa e da Praia.

Quando das enchentes ordinárias, as águas das lagoas de tabuleiro subiam de nível e vertiam para o canal natural e para a lagoa do Campelo. O excedente hídrico do canal tendia a verter para a bacia do Guaxindiba. Como o canal era descontínuo, as águas corriam com baixa velocidade e tendiam a estacionar. As águas excedentes da lagoa do Campelo também fluíam lentamente pelos canais da Ponte e da Cataia e tendiam a ficar represadas porque as cheias no sistema Campelo costumavam coincidir com as cheias do Paraíba do Sul. Um informante idoso, de nome Isaac, residente em Guaxindiba, informou, no fim dos anos 1990, que as cheias permitiam a seu pai e a ele saírem em canoa do rio Guaxindiba e atravessarem o rio Paraíba do Sul até sua margem direita para fazer compras na antiga Casa Sincera. Pela sua informação, a vazão aumentava muito e ultrapassava o baixo divisor de águas entre o Paraíba do Sul e o Guaxindiba, com cerca de apenas 6 metros. Não se costuma considerar divisores de água em planícies, mas existe um ponto mais elevado entre o brejo de Cacimbas e o rio Guaxindiba, sugerindo um modesto divisor de água que podia ser transposto com cheias extraordinárias.

Examinando a topografia e os vertedouros naturais do sistema Campelo, o Departamento Nacional de Obras e Saneamento (DNOS) notou que as águas de cheia tendiam a correr em direção ao rio Guaxindiba pelo brejo de Cacimbas, onde um canal de navegação já havia sido aberto no século XIX, ligando a lagoa de Macabu, nos tabuleiros, ao Paraíba do Sul. Trata-se do canal de Cacimbas. Tanto esse canal, quanto os de Cataia e da Ponte apresentam uma peculiaridade: correm para o rio Paraíba do Sul quando seu nível abaixa a partir de uma determinada cota e vertem em sentido contrário com a cheia do rio. Se as águas de cheia ocorrem simultaneamente no rio e nas lagoas de tabuleiros, a tendência é o estacionamento das águas ou a lentidão do fluxo rumo ao rio Guaxindiba. Mas antes disso, as águas de cheia do Paraíba do Sul é que enchiam verdadeiramente as lagoas e brejos da restinga, contrariando o sentido natural dos fluxos, do ponto mais alto para o ponto mais baixo.

Para colocar o sistema Campelo a serviço da agropecuária, o DNOS concebeu um canal para aduzir águas do Paraíba do Sul no sistema, aproveitando parte do canal do Nogueira, aberto entre o rio e a lagoa de Brejo Grande para fins de navegação. Ele foi abandonado até o DNOS aproveitar o trecho da lagoa da Olaria até a lagoa de Brejo Grande, estendendo-o até a lagoa do Campelo. Usando parte do canal natural do drenonatural entre os tabuleiros e a restinga, o órgão ligou a extremidade norte da lagoa do Campelo à foz do rio Guaxindiba, no mar, pelo canal Engenheiro Antônio Resende. Tentou neutralizar o canal da Cataia, instalando três comportas automáticas na sua foz, no Paraíba do Sul. Instalou também duas comportas desse tipo no canal de Cacimbas, desviando a extremidade norte do canal para o Engenheiro Antônio Resende. Quando as águas do rio subiam, a força delas fechava as comportas. Quando o nível do rio ficava mais baixo que o nível dos dois canais, a força das águas abria as comportas para que elas fluíssem em direção ao Paraíba do Sul.

A finalidade do sistema de canais e comportas do DNOS era estabilizar a lâmina d’água da lagoa do Campelo e eliminar sua salinidade para a agropecuária. As águas do Paraíba do Sul entrariam pelo canal do Vigário, quando o nível do rio alcançasse cerca de 5,20 m, chegando à lagoa do Campelo em nível de 3,20 m e saindo pelo canal Engenheiro Antônio Resende. No local, foi construído um vertedouro de concreto com 4,60 m, pelo sistema de cota da Inspetoria de Portos e Costas, com 1,75 m acima da cota geodésica, hoje usada pelo Instituto Estadual do Ambiente. O excedente também poderia sair pelo canal da Cataia, mas nunca entrar.

A monografia de conclusão de curso de Geografia no IFF, de Leidiana Alonso Alves, com o título de “Análise geossistêmica da variação temporo-espacial dos espelhos d’água das lagoas do sistema Campelo entre os anos de 2006 e 2015” (Campos dos Goytacazes: IFF/Centro, 2016) trás informações que o extinto DNOS não tinha: a contribuição hídrica das lagoas de tabuleiros barradas pela porção norte da restinga do Paraíba do Sul na direção da lagoa do Campelo. Esse barramento natural não cortou de todo a ligação dessas lagoas com a lagoa do Campelo. As lagoas de tabuleiros ainda recebem água da zona serrana e a conduzem para a lagoa do Campelo.

Orientação dos cursos d'água no Sistema Campelo. Base cartográfica adaptada de Leidiana Alves (2016)

Creio que devemos considerar apenas as lagoas de Maria do Pilar, Taquaruçu, Olaria, do Fogo, Brejo Grande, São Gregório, Santa Maria, da Saudade, do Saco, do Funil, Grande, das Pedras, Salgada e do Macabu como contribuintes do Campelo. A do Cantagalo fluía e flui, quando cheia, para o rio Paraíba do Sul. A do Vigário idem, originalmente. Mas o DNOS fechou o canal que a ligava ao rio e abriu outro, para ligá-la à lagoa Maria do Pilar. Por ação antrópica, então, ela passou a integrar o sistema Campelo. Cabe notar também que muitas lagoas pequenas do sistema ou são braços das maiores ou foram capturadas por ele. Mas o princípio continua o mesmo: as lagoas de tabuleiros fluem para a lagoa do Campelo e as águas dessa fluem para o córrego da Cataia, em direção ao Paraíba do Sul, quando seu nível permite, ou para o rio Guaxindiba pelo Canal Engenheiro Antonio Resende, quando o nível da lagoa supera o coroamento do vertedouro. Contudo, as cheias do sistema Campelo contam mais com as cheias do Paraíba do Sul do que com as cheias provenientes da zona serrana à margem esquerda do grande rio.

Sistema Campelo. Elaborado por Leidiana Alves (2016)

Para encerrar, cabe notar a complexidade do sistema Campelo. Originalmente, em tempo de estiagem, com o nível do Paraíba do Sul baixo, a lagoa do Campelo atuava como um receptáculo de água das lagoas de tabuleiros e as escoava para o rio pelo córrego da Cataia. Quando das cheias anuais, havia reversão hídrica: as águas do Paraíba do Sul ganhavam o córrego da Cataia e alagavam o brejo de mesmo nome, a lagoa do Campelo (que compreendia a lagoa do Arisco) e alcançavam as lagoas de tabuleiros. Assim, o sistema Campelo atuava como afluente do grande rio nas estiagens, afluente esse que era alimentado pelo Paraíba do Sul nas cheias.

Com as obras do DNOS, o sistema Campelo tornou-me ainda mais complexo. Pelos canais do Vigário e Engenheiro Antônio Resende, o Paraíba do Sul passou também a defluir no mar pelo rio Guaxindiba, depois de cruzar a lagoa do Campelo. Podemos ainda especular que, se as duas conexões do sistema Campelo com o Paraíba do Sul – canais do Vigário e Cataia – forem vedadas nas cheias ou nas estiagens, alcançando lagoa do Campelo nível que ultrapasse o vertedouro na sua extremidade setentrional, o sistema passa, realmente e não apenas virtualmente, a desaguar no mar pelo canal Engenheiro Antônio Resende, que subtraiu a foz do rio Guaxindiba finda a sua abertura pelo DNOS nos anos de 1970. Assim, o sistema Vigário se associa a duas bacias: Paraíba do Sul e Guaxindiba.

Por fim, poderíamos considerar o córrego da Cataia e o brejo de Cacimbas como os últimos afluentes do Paraíba do Sul. Embora o comportamento hídrico de ambos seja atípico, eles não deixam de afluir para o grande rio.

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