- Historiador com doutorado na Universidade Federal do Rio de Janeiro, colaborador com a imprensa e autor de 26 livros.
Cabe perguntar quando, onde e por que o mito dos povos nativos do norte fluminense como bárbaros, quase animais, sem cultura, sem religião, deu lugar ao mito de povos altivos, corajosos, inteligentes e individualistas, defendendo com garra sua terra e diferenciando-se dos outros povos nativos. Que fatores de ordem política e cultural, principalmente, levam os europeus dos séculos XVI e XVII a temê-los e detestá-los, enquanto que, a partir de fins do século XVIII, os habitantes do norte-noroeste fluminense, herdeiros dos europeus, começam a construir o mito do bom selvagem e a elegê-lo como o herói fundante das sociedades regionais, assim como o puri, da mesma nação macro-jê, de cruel, foi transformado em mito no noroeste fluminense.
Nos séculos XVI e XVII, a civilização ocidental, em contato com uma grande diversidade cultural, acentua seus traços diferenciais em relação ao outro. Identidade e alteridade colocam-se frente à frente, levando os europeus (e também os outros povos) ao horror pela diferença, como bem acentuou o antropólogo Claude Lévi-Strauss (LÉVI-STRAUSS, Claude. “Raça e história”. In: Antropologia Estrutural Dois. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1976). Imbuídos do ânimo missionário cristão, impunha-se reduzir e, se possível, apagar a alteridade. O mito do goitacá como abjeto, canibal, intratável cumpria o papel de facilitar a obra de aculturação, de expulsão e de extermínio. Naquele momento, tratava-se de afirmar os valores da civilização ocidental frente ao outro.
A Iluminismo, no século XVIII, construiu uma nova imagem dos povos nativos da América, da África, da Ásia e da Oceania. O nativo, agora, passa a ser o homem puro, não corrompido pela sociedade, vivendo em estado natural anterior ao contrato social. A visão otimista e compreensiva da alteridade cultural é fruto da crítica liberal e romântica ao Antigo Regime. Maquiavel acentuou o papel do indivíduo astuto na conquista e manutenção do poder político para a construção do Estado. Hobbes insistiu na imprescindibilidade do Estado como mal menor para cortar o mal maior da guerra de todos contra todos. Bossuet apelou para Deus, que investe o monarca de poder absoluto. Lutero democratizou o direito divino, estendendo-o não apenas ao monarca, mas a todo o funcionalismo público, que teria por missão usar a espada para manter os maus sob controle. Um dos componentes do paradigma político da Idade Moderna é a crença na maldade intrínseca do homem, que, em estado de natureza, flui em toda sua pujança e coloca em risco a vida de cada indivíduo. Daí a necessidade ou da força ou de um contrato social ou da intervenção divina para constituir um poder que reprimisse a maldade. Nessa perspectiva, considerava-se que os povos americanos viviam em estado de natureza e que, portanto, exerciam sua maldade sem limitações. Como em nenhum contexto cultural mais complexo se pode esperar uniformidade de pensamento, claro que houve pensadores com visão distinta. O relativismo de Montaigne, por exemplo, levou-o a compreender e a defender os nativos americanos, inclusive nas manifestações consideradas como de extremo barbarismo, a exemplo da antropofagia. Etiènne de la Boétie viu o poder como uma forma de usurpação e de consentimento comodista por parte dos indivíduos. Apesar das críticas relativistas, o que imperou, porém, foi a convicção na necessidade de um Estado ou de um Monarca (com ele confundido) forte para coibir a maldade. No plano extraeuropeu, cabia a esse Estado e à Igreja a missão civilizadora ou exterminadora do mal e da irreligião.
Voltando ao Iluminismo, com Locke começa a construção de outro paradigma, em que o Estado é visto como o aperfeiçoamento do estado natural ou como a garantia dos interesses gerais contra o assédio de interesses particularistas. Por esta ótica, o ser humano é bom em estado de natureza, passando a ser mau ao viver em sociedade. Não sem razão, Couto Reis e Azeredo Coutinho, como representantes do Iluminismo, tratam o índio com benevolência e reconhecem suas virtudes. Assim, de mau, o goitacá passa a bom, nos séculos XIX e XX por influência do Iluminismo e do romantismo e pela necessidade de construir a identidade dos novos Estados nacionais, que então se tornavam independents, e das várias regiões existentes neles. Se antes se tratava de afirmar a civilização ocidental em sua versão europeia, trata-se agora de afirmar os Estados Nacionais nascentes e as peculiaridades regionais dentro de cada um deles. Cumpre lembrar a forte tendência autonomista do norte fluminense a partir do século XIX, tendência que aflorou várias vezes pleiteando a criação de uma nova província dentro do Império e de um novo Estado dentro da República, bem como a mudança de capital de Niterói para Campos. Para tanto, tornava-se necessária a fabricação de mitos políticos.
Tanto Claude Lévi-Strauss quanto Mircea Eliade, cada qual a seu modo, chamam a atenção para o aspecto estrutural, universal, permanente e sobre-humano do mito nas sociedades arcaicas. Nas sociedades tradicionais, as personalidades míticas assumem a condição divina com aparência humana, numa verdadeira operação de antropomorfização, ao passo que, nas sociedades modernas, realiza-se o procedimento inverso de divinizar o herói. Mais ainda: o processo de heroificação pode envolver seja um indivíduo seja uma instituição.
Há várias explicações para a dinâmica dos mitos. Mircea Eliade defende a tese de que os mitos, em seu estado mais forte, constituem característica de uma fase sacralizada da humanidade. Em sua perspectiva, o desencantamento do mundo teria começado com a revolução monoteísta judaico-cristã e culminado com a sociedade industrial, passando pela revolução científica do século XVII. Mesmo assim, reconhece o autor, é notória a sobrevivência dos mitos num mundo profano, de forma modificada ou camuflada (ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano: a essência das religiões. Lisboa: Livros do Brasil, s/d; e Aspectos do mito. Lisboa, Edições 70, 1986). Num estudo escrito em homenagem a Raymond Aron, Claude Lévi-Strauss sustenta a permanência do mito. Escreve ele: “Sabemos que os mitos se transformam. Estas transformações, que se operam de uma variante à outra de um mesmo mito, de um mito a um outro mito, de uma sociedade a uma outra sociedade com referência aos mesmos mitos ou a mitos diferentes, afetam ora a armadura, ora o código, ora a mensagem do mito, mas sem que este deixe de existir como tal; elas respeitam assim uma espécie de princípio de conservação da matéria mítica, em função do qual de qualquer mito sempre poderá sair um outro mito” (LÉVI-STRAUSS, Claude. “Como morrem os mitos”. In: Antropologia Estrutural Dois. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1976).
Na abordagem do antropólogo francês, um mito morre não por alcançar os limites de sua elasticidade ao ser distendido no tempo, mas por ultrapassar determinados limites geográficos ou por entrar em contato com outras culturas. Por esse ângulo, o desmantelamento de um mito tem mais a ver com sua difusão e com processos de aculturação. Ainda em suas palavras, “… não é menos concebível que, vencendo sucessivas barreiras, o impulso fabulador se esgota e que o campo semântico das transformações, fácil de explorar no início, ofereça um rendimento decrescente. Tornando-se cada vez menos plausíveis à medida em que se engendram uns aos outros, os últimos estágios do sistema imporiam tais distorções à armadura mítica, submeteriam sua resistência a tão rude prova, que ele acabaria por ruir. Então, o mito cessaria de existir como tal. Ou se esfumaria para ceder o lugar a outros mitos, característicos de outras culturas ou de outras regiões; ou ainda, para subsistir, sofreria alterações que afetariam não só a forma, mas a própria essência mítica (Op. cit).
Este enfoque se aplica mais à compreensão das transformações e desfigurações por que passam os mitos nas sociedades humanas arcaicas. Para a análise dos mitos nas sociedades humanas ditas civilizadas, a matriz proposta por Raoul Girardet se mostra mais apropriada. Duas observações dele parecem pertinentes. A primeira mostra que os mitos políticos têm momentos fortes e fracos, momentos de efervescência e períodos de remissões, descrevendo também uma história que pode levar à substituição de um mito por outro. A segunda enfatiza que os mitos políticos se afirmam com mais nitidez, impõem-se com mais intensidade nos “períodos críticos.” (GIRARDET, Raoul. Mitos e mitologias políticas. São Paulo, Companhia das Letras, 1987). José Murilo de Carvalho salienta que “embora heróis possam ser figuras totalmente mitológicas, nos tempos modernos são pessoas reais.” (CARVALHO, José Murilo de. A formação das almas: o imaginário da República no Brasil. São Paulo, Companhia das Letras, 1990).
Nessa direção, cumpre verificar qual o peso que o mito do índio goitacá ainda exerce nas sociedades do norte fluminense. Curioso notar que, nos séculos XVI e XVII, a toponímia indígena foi substituída por uma toponímia cristã. A Capitania de São Tomé passou, no século XVIII, a chamar-se Distrito dos Campos Goaitacás. A Vila de São Salvador foi elevada à cidade com o nome de Campos dos Goytacazes, depois apenas Campos. Na década de 1980, voltou a ser grafada conforme o ato de elevação. Na cidade, a rua do Gás foi rebatizada com o nome de rua dos Goitacazes. O Distrito campista de São Gonçalo teve seu nome cristão substituído por Goitacases. Um dos símbolos usados na primeira administração Garotinho, entre 1989 e 1992, foi um indiozinho goitacá com uma flecha distendida no arco, tendo na ponta uma rosa, concepção de Fernando Luiz Neves Soares. Consta que Darcy Ribeiro pretendeu homenagear o goitacá com um projeto de ajardinamento da Universidade Estadual do Norte Fluminense, em que as árvores seriam dispostas na forma de um cocar, adorno não usado pelos índios da planície norte fluminense entre os rios Macaé e Paraíba do Sul. O Parque Ecológico Nacional de Jurubatiba, no território dos municípios de Macaé, Carapebus e Quissamã, iria denominar-se Parque Nacional dos Goitacazes. No entanto, por estar este nome intrinsecamente ligado a Campos, os três municípios o rejeitaram.
O caso mais ilustrativo, todavia, é o de uma estátua do índio goitacá postada na entrada da cidade. Ela recebeu toda sorte de críticas dos artistas locais, não pela debilidade do mito senão que por ser ela uma obra de mau gosto, não fazendo justiça ao índio. O artista João de Oliveira, usando índios como um de seus principais assuntos, empreendeu pesquisa para pintar uma espécie de retrato falado do goitacá.
Ou bem ou mal, o mito continua presente como o mais antigo da cidade, ao lado dos de Benta Pereira, da própria região, de José do Patrocínio, de Saldanha da Gama, de Nilo Peçanha e de Nina Arueira.
Do ponto de vista humano, coincidência ou não, antes mesmo da colonização desse território por grupos de origem europeia, os povos indígenas que o habitavam conferiam-lhe uma certa unidade cultural. A região era conhecida como Campos dos Goitacazes por estarem aí instalados os indígenas deste nome. Esclarece-nos Angyone Costa que o domínio dos Goitacás ou Goitacaz consistia numa estreita faixa de terra apertada pelos Papanaz e Tamoios, distendida do Espírito Santo à Paraíba do Sul, e que essa nação, no entendimento de vários estudiosos, formava uma espécie de ilha no meio de povos tupis, não só pelo modo de vida peculiar que desenvolveram por imposição do ambiente como também pela língua que falavam. Obrigado a empreender um estudo de antropologia histórica, uma vez que esse povo já está extinto ou muito descaracterizado culturalmente na primeira metade do século XVII, Angyone Costa aceita a divisão dos goitacás nos três grandes grupos reconhecidos por eles próprios e apontados pelos cronistas dos séculos XVI, XVII e XVIII, quais sejam, goitacá-guaçu, goitacá-mopi e goitacá-jacoritó, além de considerar os coroados, os puris e os coropós como seus descendentes. Da língua ou línguas faladas por esses povos, nada restou, nem sequer na toponímia, a não ser breves apontamentos de estudiosos. Antes deles, von Martius e Spix, Maximiliano de Wied-Neuwied e vários outros naturalistas europeus também anotaram palavras desses povos, todos eles integrntes do granpo grupo linguístico macro-jê (RODRIGUES, Aryon Dell’Igna e CABRAL, Ana Suelly Arruda Câmara. Línguas e culturas macro-jê. Brasília: UnB/Finatec, 2007). Segundo Noronha Torrezão: “Dos indivíduos que me forneceram estes vocábulos, o primeiro, já muito velho, pois tem a cabeça completamente grisalha, diz ter assistido às guerras dos Coropós com os Botocudos, e acompanhando os primeiros atravessou duas vezes o Rio Doce em perseguições dos segundos, tendo perdido um irmão nesses combates. Diz ele, que o terreno aquém do Rio Doce ficou limpo dos Botocudos, mas os mineiros acabando com os Puris, os Botocudos passaram-se outra vez para cá e dizimados como se achavam não puderam os Puris e os Coropós resistir-lhes senão mais para cima, onde estavam os Coropós com os Coroados, para os lados de Muriaé (TORREZÃO, Alberto Noronha. “Vocabulário puri”. Revista Trimestral do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro Tomo LII, Parte 1a. Rio de Janeiro: Laemmert, 1889).
Por mais que informantes e informado não sejam inteiramente confiáveis e por mais contaminada que estivesse pelo tupi, a língua possivelmente falada pelos puris e talvez, com variantes, pelos goitacás, coropós e coroados aparece áspera e estranha ao contexto cultural circunvizinho. Aliás, o insulamento cultural dos goitacás já é reconhecido de longa data. Jean de Léry, baseando-se num informante normando embarcado junto com ele, ao singrar as águas que banham as costas da planície pertencente à ecorregião em apreço, registrou, por volta de 1553, que os índios uetacá eram “…donos de uma linguagem que seus vizinhos não entendem…”(LÉRY, Jean. Op. cit.).
No século seguinte, o padre Simão de Vasconcelos notifica que os goitacás habitavam o território compreendido entre os rios Paraíba e Muriaé, “… sítio, porém horrível e inexpugnável, porque, em vez de montes, comuns aos mais tapuias, quais crocodilos viviam nas águas de grandes alagoas, de que abundavam seus campos, chamados por isso dos goitacases, em choças de palha fundadas cada qual sobre um esteio de pau metido na areia por mor segurança de seus contrários, cercados sobretudo de matas espessas, rios e charcos inacessíveis. Deste lugar saíam, quais do lago de Averno, a dar assaltos nos caminhos e praias, fazendo pasto de seus ventres tudo o que encontravam, ou fosse bruto ou pessoa humana; e não podiam eles ser cometidos senão com grandes dificuldades e, em tal caso, apelidavam as nações das serras em seu favor, todas feras e bárbaras, que só para efeitos semelhantes consentiam entrar em seus distritos, e vinham ajudá-los a bandos; e quando acaso se viam em perigo, acolhiam-se a suas alagoas e nadando se metiam nas casas, donde nem a pé nem a cavalo podiam ser acometidos” (VASCONCELOS, Simão. Op. cit.).
Dando um desconto ao maravilhoso que sempre povoou a mente de Simão de Vasconcellos com relação aos goitacás, oportuno é atentar para as conexões que a nação indígena da planície fazia com as nações serranas. Embora não possamos dar crédito irrestrito à imaginação fértil do padre, não são de todo descabidas as relações dos povos indígenas da planície com os povos que habitavam o tabuleiro e a serra. Examinando a questão em tese de doutorado, Renato da Silveira Mendes nota que “Mesmo entre os indígenas, cuja sujeição ao quadro natural poderia ser motivo para separação nas duas áreas, observamos, ao contrário, uma estreita ligação com regiões naturais diferentes e mesmo opostas. Embora dedicando-se à pesca as tribos do litoral não podiam passar sem a exploração da floresta que, além de fornecer a madeira para as embarcações, armas e utensílios, proporcionava-lhes a caça e possibilitava a cultura da mandioca nas clareiras” (MENDES, Renato da Silveira. Paisagens culturais da baixada fluminense. São Paulo: Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, 1950).
Se, a despeito da tecnologia rudimentar da maior parte dos povos indígenas americanos, estabeleciam-se intercâmbios por vezes de longo alcance entre regiões distantes e extremamente distintas, lícito é admitir que, no norte-noroeste fluminense, contatos entre planície e serra se tornassem mais facilitados em vista da existência do tabuleiro, área de transição entre ambas, de resto povoada também por nações afiliadas aos goitacás. Em suma, não é descabido afirmar que o quadro nativo predispõe à constituição de uma ecorregião, no norte-noroeste fluminense, antes mesmo da chegada dos europeus, ecorregião cujos elementos formadores acabam levando os limites administrativos a se ajustarem, com certa elasticidade, a eles.
Em que pesem os equívocos analíticos que impregnam o pensamento de Richard Wilkinson, a grande contribuição que ele parece ter dado à compreensão das relações entre as sociedades e a natureza não-humana diz respeito aos conceitos de modos de vida em equilíbrio ou em desequilíbrio com o meio ambiente. A seu juízo, “A estabilidade é alcançada quando a cultura se adapta adequadamente a um meio ecológico em particular.” Para tanto, “Em termos de solucionar os problemas adaptativos fundamentais, uma sociedade tem de preencher dois requisitos antes de poder chegar à estabilização: ter desenvolvido uma tecnologia produtiva integrada e também ter encontrado formas de assegurar que o equilíbrio seja mantido entre a sua procura de recursos naturais e a capacidade do meio ambiente em satisfazê-la” (WILKINSON, Richard. Op. cit.).
E adverte que “… toda população tem capacidade potencial de se expandir além dos limites de seus recursos naturais. Para manter-se em equilíbrio ecológico, tem de desenvolver mecanismos que controlem o seu crescimento antes que os recursos cheguem a ficar ameaçados. Qualquer um desses mecanismos teria que agir homeostaticamente a fim de manter a população em tal nível que o seu consumo se aproximasse – mas nunca excedesse – a safra máxima sustentável. Se o crescimento da população fosse controlado apenas pela fome, chegaria sempre aos limites máximos da provisão de alimentos; os recursos seriam super-explorados, o estoque de capital corroído e a capacidade de reprodução prejudicada. A presença da fome em uma população indica que provavelmente ela não está em equilíbrio ecológico (Ibidem ).
Esbocemos uma reflexão acerca destas palavras iniciais de Wilkinson, que recorre à história menos para compreendê-la do que para extrair ilações referentes aos distintos processos de desenvolvimento. Antes de mais nada, é extremamente difícil definir o que seja equilíbrio de uma sociedade com o seu meio ecológico, se levarmos em conta apenas o sistema social. Nosso pensamento ainda está bastaste impregnado pela concepção liberal e socialista de que as necessidades humanas são, via de regra, determinadas historicamente. Por este prisma, os refrigerantes, os alimentos enlatados, os veículos automotores individuais e familiares e tantos outros bens e serviços transformaram-se em necessidades essenciais para o ser humano a partir da revolução industrial. Pelos princípios que se delineiam com o paradigma organicista, pouco a pouco erigido a partir da crise do paradigma clássico, o ser humano tem necessidades essenciais e estruturais pelo fato de pertencer, de um lado, ao reino animal e, de outro, por tratar-se de um animal com um cérebro hipercomplexo. Tais necessidades, estabelecidas no longo período de 200 mil anos de existência do “Homo sapiens” por um intrincado processo de mutações genéticas e de seleção natural, pode resumir-se em alimentação, saúde, educação, habitação, vestuário, trabalho, lazer e cultura (no sentido estrito). Conquanto cada sociedade atenda de diferentes formas a estas necessidades, a biologia e a antropologia já conseguiram traçar parâmetros mais ou menos maleáveis, dentro dos quais é possível definir o que e quanto são bastante para cada indivíduo.
Ao levar-se em conta que um sistema antropossociocultural não pode existir fora de um ecossistema ou de ecossistemas, entra em cena a questão dos limites. Não basta considerar apenas os limites dos sistemas humanos, que podem ser muito elásticos em si mesmos, porém inelásticos quando situados em seu contexto ecológico. A natureza tem limites que nem sempre as sociedades respeitam. Daí Wilkinson ter razão em alertar para a sustentabilidade ecológica de uma sociedade humana. Ultrapassados certos limites, a sustentabilidade tende a se romper e a atuar como fator para a perda de equilíbrio de uma sociedade com seu meio. Vários historiadores já apontaram para este fator como um dos componentes da crise de sociedades humanas. O que Wilkinson valoriza em excesso é o papel do crescimento demográfico, atribuindo a ele quase sempre a quebra do equilíbrio antes mantido por uma sociedade com seu meio. A fome, por exemplo, normalmente decorre de desigualdades sociais no interior de um sistema social, não somente de um mau relacionamento dele com o meio ambiente. Outro aspecto pouco claro em Wilkinson concerne ao papel que o crescimento demográfico desempenha no rompimento do equilíbrio sociedade–meio ambiente. O autor restringe-se a registrá-lo, nunca a explicá-lo.
Em resumo, poderíamos dizer que, aos olhos do autor em pauta, existem duas formas fundamentais de um sistema social romper o equilíbrio com o sistema ecológico: 1- aumentar a população mantendo os métodos de produzir e os padrões de consumo de bens tradicionais; 2- manter a população e aumentar o consumo de bens tradicionais ou bens adotados. Poder-se-ia pensar ainda na combinação das duas formas. Em qualquer caso, cabe perguntar por que aumenta a população ou o consumo. Ou ainda, se não estaria havendo uma inversão de fatores: em lugar de atribuir-se o desequilíbrio ao crescimento demográfico ou ao aumento do consumo, não seria mais apropriado admitir-se que ambos decorrem do desequilíbrio? Na visão de Arnold J. Toynbee, pensador da história sempre tão desprezado pela historiografia marxista e refinada dos “Annales”, existem sempre elementos imponderáveis que fazem uma sociedade pôr-se em marcha rumo ao desequilíbrio ou ao reequilíbrio (TOYNBEE, A. J., ver, de preferência, “Um estudo de história”, edição revisada e condensada por Toynbee e Jane Kaplan. Brasília: EdUnB/São Paulo: Martins Fontes, 1986).