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Arthur Soffiati

- Historiador com doutorado na Universidade Federal do Rio de Janeiro, colaborador com a imprensa e autor de 26 livros.

Rio Carangola

Pequeno para o Brasil e médio para a Europa, o rio Carangola tem 130 quilômetros de extensão. J.C.R. Milliet de Saint-Adolphe o registra num verbete apenas como “Ribeiro da província do Rio de Janeiro, na comarca de Campos, afluente do Muriaé” (Dicionário geográfico, histórico e descritivo do Império do Brasil. Paris: Vª J. -P. Aillaud, Guillard e Cª, 1863). O território que historicamente resultou em Portugal é cortado pelos rios Lima e Cávado, ambos com 135 quilômetros. O Carangola é afluente do Muriaé, que, por sua vez, é afluente do Paraíba do Sul, que desemboca no mar. O Lima e o Cávado desembocam diretamente no mar, sendo rios principais de suas respectivas bacias. O Cávado tem oito barragens e é um dos rios mais antropicamente transformados de Portugal e da Europa. Em suas margens, erguem-se cidades e sua foz foi prolongada por guias-corrente.

Os três desníveis do Carangola foram um dos pontos tomados em 1843 para a definição dos limites entre as províncias do Rio de Janeiro e Minas Gerais. Em torno de sua nascente, formou-se o município de Orizânia, enquanto o município de Itaperuna constituiu-se de tal forma que sua foz ficou em seu âmbito. Tudo isso é convenção humana. Tudo podia ser diferente. O rio Carangola e os rios em geral são anteriores à ordem humana.

Em toda a sua extensão, ele e seus afluentes formam uma bacia serrana. Trata-se da parte baixa da serra, na margem esquerda do Paraíba do Sul. Outrora, ele era revestido de pujantes florestas classificadas com estacionais semideciduais. É a mesma Mata Atlântica, mas que perde de 20 a 50% das folhas na estação seca. A fauna aquática, terrestre e alada era bastante diversificada. José Ribamar Bessa Freire e Márcia Fernanda Malheiros sustentam que povos de língua maxacali habitavam a bacia do Carangola. Esses povos formavam, então, uma espécie de enclave cultural entre os povos da grande nação de língua jê, da qual faziam parte os puris. (“Aldeamentos indígenas do Rio de Janeiro”. Rio de Janeiro: UERJ, 1977). Os povos nativos do norte-noroeste fluminense tiravam seu sustento da natureza, como todos os povos, mas, vivando numa economia de subsistência, as transformações efetuadas na natureza eram mínimas.

Aspecto do rio Carangola
Aspecto do rio Carangola

O rio Muriaé foi um dos que permitiram a colonização do noroeste fluminense a partir de Campos e da Zona da Mata mineira. De uma ponta e de outra, partiam aventureiros, exploradores, comerciantes, colonos etc. Os colonos que se fixaram na bacia do Carangola estavam inseridos numa economia de mercado, mesmo que minimamente. As florestas foram removidas pouco a pouco para o fornecimento de lenha e madeira, ao mesmo tempo em que abriam espaço para a agropecuária. Desprovidos de proteção, os solos de encosta foram carreados para os rios num processo erosivo que foi acentuado pelas pastagens em pontos altos. Esses sedimentos, quando em suspensão, conferem turbidez às águas. Quando depositados no fundo, assoreiam os rios.

Queda d´água no rio Carangola
Queda d´água no rio Carangola

O passo seguinte foi a progressiva urbanização. Orizânia ergueu-se próximo à nascente do Carangola. Seu nome deriva de arroz. Um dos nomes do núcleo, em seu tempo de vila, é Arrozal em alusão à cultura predominante. Divino, Carangola, Faria Lemos e Tombos formaram-se em Minas Gerais, enquanto Natividade e Porciúncula foram construídas no território fluminense do rio. Um exame superficial mostra que a bacia do Carangola é pouco urbanizada, com vastas áreas rurais entre os núcleos. O que se nota é que as cidades cresceram em direção ao rio e não apenas se afastando dele.

Na estação da estiagem, os rios da bacia parecem desaparecer, mas, na estação das chuvas, as águas se tornam torrenciais e violentas. Alexandre Bréthel (1862-1887), francês que se estabeleceu em suas margens na segunda metade do século XIX, pouco fala das enchentes em suas cartas enviadas a parentes. Ele aceitou um trabalho no Brasil por dois anos e acabou ficando, casando-se e constituindo família. Em seu tempo, as florestas já estavam sendo devastadas, mas ainda pareciam inesgotáveis.

As chuvas de janeiro e fevereiro de 2021 causaram enchentes na bacia do Carangola. Caiu muita chuva na bacia. Por que? Examinando essa grande precipitação isoladamente, tem-se a impressão de que se trata de um caso pontual. Mas quando se observam o inverno rigoroso que se abate sobre a Europa atualmente, com oscilações climáticas espantosas, as chuvas torrenciais na Galícia, noroeste da Espanha, os incêndios florestais na Califórnia, Amazônia, Pantanal e Indonésia. A neve severa no Texas, os furacões que vêm arrasando a América Central e deixando milhares de pessoas desabrigadas e com fome e se examina a elevação progressiva dos temperaturas médias mundiais, torna-se difícil negar que o aquecimento da Terra por ações humanas está causando mudanças climáticas perigosas para o mundo globalizado.

Enchente de 2021 em Porciúncula, às margens do rio Carangola
Enchente de 2021 em Porciúncula, às margens do rio Carangola

Para agravar, na superfície terrestre, aumenta a impermeabilização dos solos, o estrangulamento dos rios, os golpes contra as florestas. Anunciou-se que nunca uma enchente foi tão destruidora em Porciúncula quanto a de 2021. A afirmação está mal formulada. Mais apropriado é dizer que nunca se registrou uma enchente tão implacável como a de 2021. Foi muita água para uma pequena bacia. E quais as providências tomadas? Monitorar o nível dos rios e retirar as pessoas das casas mais atingidas, colocando-as em abrigos públicos até que a situação volte ao “normal”. Quando volta, tudo é refeito como antes. A defesa civil é útil e sempre será, mas não basta. Não existe mais o antigo normal. O novo normal exige mudanças em nossas cidades, mas prefeito nenhum quer inicia-las. Melhor deixar as coisas como estão e ainda faturar em cima delas.

Avanço da cidade de Porciúncula sobre o rio Carangola
Avanço da cidade de Porciúncula sobre o rio Carangola1 em Porciúncula, às margens do rio Carangola

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