Uma escavação arqueológica realizada em Salvador, na Bahia, trouxe à tona um capítulo oculto e doloroso da história brasileira: um antigo cemitério de pessoas escravizadas, localizado no estacionamento do Complexo da Pupileira, sede da Santa Casa de Misericórdia da Bahia. Acredita-se que o espaço possa abrigar restos mortais de mais de 100 mil indivíduos, tornando-o o maior cemitério de africanos escravizados já identificado na América Latina.
Os trabalhos de campo começaram no dia 14 de maio. Já no quinto dia, arqueólogos encontraram ossos humanos — entre eles, dentes e grandes estruturas ósseas — a cerca de 2,7 metros de profundidade, indício de que o local foi aterrado após o fechamento do cemitério, em 1844.
Uma história soterrada por quase dois séculos
O arqueólogo Luiz Antônio Pacheco destacou a importância histórica da descoberta:
“Este cemitério foi invisibilizado por camadas de aterro que esconderam a verdadeira história da cidade. Mas ela estava lá, esperando para ser encontrada. Estamos diante de uma reparação histórica.”
A localização exata foi determinada pela arquiteta e urbanista Silvana Olivieri, a partir de sua pesquisa de doutorado na UFBA. Utilizando mapas históricos do século XVIII, registros da Santa Casa e levantamentos arqueológicos, ela identificou o terreno como parte do antigo Cemitério dos Africanos.
Local sagrado para a memória negra
Mais do que um sítio arqueológico, o espaço é reconhecido por pesquisadores e movimentos sociais como um território sagrado, especialmente para a população negra. Há indícios de que mártires da Revolta dos Malês, levante muçulmano ocorrido em 1835, estejam sepultados ali.
“É um local sagrado para a população negra da Bahia, do Brasil, e para todos aqueles que se reconhecem nas pessoas que ali estão sepultadas”, afirma Olivieri.
Preservação e uso do espaço em debate
Atualmente, o espaço abriga um estacionamento, um museu, uma faculdade e áreas para eventos sociais, o que gerou críticas por parte da comunidade acadêmica e jurídica. O professor e advogado Samuel Vida, da UFBA, alerta:
“As comunidades afetadas, especialmente a negra, devem ser ouvidas. O local não pode continuar sendo usado para festas.”
Uma das propostas em discussão é a criação de um memorial permanente no local, para honrar a memória dos que ali foram enterrados.
Iphan e Ministério Público atuam pela proteção
O Ministério Público da Bahia (MPBA) solicitou ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) o reconhecimento oficial do sítio arqueológico. Audiências públicas estão sendo organizadas para debater a transformação do espaço em patrimônio cultural protegido.
“Já deveria ser considerado um sítio arqueológico. Agora, o Ministério Público tomará medidas para garantir sua preservação”, afirmou a promotora de Justiça Lívia Vaz.
Proteção delicada e cuidados técnicos
Os pesquisadores decidiram não divulgar imagens dos restos mortais por respeito à sensibilidade do tema. Também optaram por não remover os ossos, protegendo-os com materiais especiais, já que o solo ácido e úmido compromete a integridade dos achados.
Um comitê para proteger a memória dos escravizados
A descoberta levou à criação do Comitê de Salvaguarda de Cemitérios de Escravizados no Brasil, com objetivo de coordenar políticas públicas de proteção, fomentar novas pesquisas e garantir a preservação de outros cemitérios semelhantes no território nacional.
Quem foram os enterrados?
Além de pessoas escravizadas, acredita-se que o cemitério abrigue os corpos de indígenas, ciganos, pobres, indigentes, suicidas, excomungados e prostitutas — grupos historicamente marginalizados. O local foi desativado em 1844, e desde então, parte dessa história foi soterrada, tanto literal quanto simbolicamente.
Um chamado à reparação histórica
A revelação desse cemitério é mais do que um achado arqueológico: trata-se de um ato de resgate da memória coletiva, um convite à reparação histórica e social. A transformação do espaço em um memorial pode representar um marco na luta contra o apagamento da história negra no Brasil.
Fonte: JPost