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Arthur Soffiati

- Historiador com doutorado na Universidade Federal do Rio de Janeiro, colaborador com a imprensa e autor de 26 livros.

Restinga de Paraíba do Sul

Para nós, ocidentais no Brasil vivendo no século XXI, é difícil imaginar como era a restinga de Paraíba do Sul há 200 anos. Mais difícil ainda é retroceder 5 mil anos. Se fosse possível viajar no tempo, não haveria terreno para que Gargaú, Atafona, Gruçaí, Açu, Quixaba, Mundéus e outras localidades se erguessem há 5 mil anos, pois não existia a restinga que hoje se estende da barra da lagoa do Açu à foz do rio Guaxindiba. Tudo era mar. Nem sequer uma ilha havia.

Existem duas explicações para a formação da restinga e da baixada fluviomarinha de Campos, de São João da Barra e de São Francisco de Itabapoana. A mais antiga foi formulada por Alberto Ribeiro Lamego em 1945 e aperfeiçoada por ele mesmo em 1955 (O homem e o brejo. Rio de Janeiro: Conselho Nacional de Geografia, 1945, e Geologia das quadrículas de Campos, São Tomé, Lagoa Feia e Xexé. Boletim nº 154 da Divisão de Geologia e Mineralogia. Rio de Janeiro: Departamento Nacional da Produção Mineral, 1955).

Pela explicação do grande geólogo campista, o rio Paraíba do Sul foi transportando sedimentos da zona serrana e os depositando no mar. Assim, foi sendo formada a planície. A primeira foz do rio Paraíba do Sul, segundo ele, desembocava na altura da lagoa do Açu na forma de um delta com longos braços. Ele denominou esse delta de Mississipi ou pé de ganso pela semelhança que ele apresentava com o do rio Mississipi ou com o pé de um ganso, com longos dedos.

Em seguida, o Paraíba do Sul se bifurcou em dois grandes braços. O mais antigo continuou na mesma direção: a atual barra do Açu. O segundo, dirigiu-se para a atual Atafona, que não existia nem podia existir na época. Aos poucos, o braço original, em direção ao Açu (que também não existia como lugar humano), vai sendo abandonado pelo próprio rio. O braço em direção à atual Atafona vai se consolidando. O volume do Paraíba do Sul era então muito maior. A força dele vai retendo areia que o mar transportava de norte para sul, preponderantemente. Formou-se a restinga. O Paraíba do Sul passou a desembocar por um delta com apenas dois braços: o de Atafona e o de Gargaú, como os conhecemos hoje. Contudo, no tempo das cheias, o rio transbordava pela margem direita (mais baixa que a margem esquerda), invadia o rio Água Preta ou Doce (hoje transformado no canal do Quitingute) e entrava nas lagoas de Gruçaí e Iquipari, chegando até a lagoa do Açu, que era então um rio com nascente na lagoa Feia. Tratava-se de um grande delta. Era um mundo bem diferente do que conhecemos hoje.

Formação da planície fluviomarinha do norte fluminense segundo A. R. Lamego (1945-55). Legenda: 1- braço abandonado do Paraíba do Sul denominado de córrego do Cula; 2- rio Água Preta ou Doce; 3- lagoa de Gruçaí; 4- lagoa de Iquipari; 5- rio Iguaçu ou lagoa do Açu

No que se reconhece como a geografia da Planície dos Goytacazes nos últimos 10 mil anos, acaba havendo uma convergência entre as interpretações de Alberto Ribeiro Lamego (1945-55) e a dos geólogos Martin, Suguio, Dominguez e Flexor (1997). A diferença entre ambas está no ponto inicial. Alberto Lamego concebe o rio Paraíba do Sul avançando sobre um golfo raso e transportando sedimentos das partes altas para as partes baixas. Assim, o rio construiu um longo espigão dentro do mar, formando seu primeiro delta. Num segundo momento, esse longo espigão se ramificou em dois braços num ponto distante da costa atual e formou um delta do tipo Ródano, por se parecer com o delta desse rio. Enquanto isso, as águas do Paraíba do Sul carreavam sedimentos que formavam a planície fluviomarinha. Finalmente, o Paraíba do Sul consolidou seu ponto de lançamento de água no mar por um delta típico do rio, recebendo, por isso, a classificação de delta do tipo Paraíba do Sul, com os braços de Atafona e Gargaú. A formação da planície foi concluída com a constituição de uma grande restinga entre o rio Guaxindiba e o cabo de São Tomé.

Dependendo da explicação de Alberto Ribeiro Lamego, a restinga estava pronta para que Gargaú, Atafona, Gruçaí, Açu e Quixaba, além de outras localidades, se erguessem sobre ela. Mas estudos recentes revisaram a tese de Lamego. Em ciências naturais, as coisas funcionam assim: nada é definitivo porque a pesquisa é contínua. Isso não significa que Lamego errou ou era negacionista. Ele formulou uma teoria sólida, mostrando que o continente cresceu sobre o mar com sedimentos trazidos pelo Paraíba do Sul, que também reteve areia transportada por correntes marinhas. No entanto, como uma teoria, para ser científica, tem de ser refutável, novos estudos permitiram que os geólogos Louis Martin, Kenitiro Suguiu, José Dominguez e Jean-Marie Flexor mostrassem um quadro diferente (Louis Martin; Kenitiro SUGUIO; José M.L. Dominguez e Jean-Marie Flexor. Geologia do Quaternário costeiro do litoral norte do Rio de Janeiro e do Espírito Santo. Belo Horizonte: CPRM, 1997).

Enquanto Lamego concluiu que a planície se formou sobre o mar, os quatro geólogos constataram que existia uma área continental onde hoje é a planície por volta de 10 mil anos, embora eles concordem com Lamego que a restinga não existisse nesse tempo tão distante.

O nível do mar subiu e invadiu esse antigo continente, chegando perto da lagoa de Cima. A máxima elevação ocorreu em 5.100 anos antes do presente. O continente antigo foi dissolvido pelo mar. O rio Paraíba do Sul recuou sua foz até Itereré. Aos poucos, o nível do mar foi abaixando e o Paraíba do Sul foi avançando e aterrando a área rasa que o mar deixou. Na altura de Campos, que ainda não existia, óbvio, o Paraíba do Sul se dividiu em dois: um braço foi em direção ao que seria o Açu e outro foi em direção ao que seria Atafona. Nesse ponto, ele se bifurcou nos braços de Atafona e Gargaú, como os conhecemos hoje.

Formação da planície fluviomarinha segundo Martin, Suguiu, Dominguez e Flexor (1997). A linha azul indica o braço abandonado do rio Paraíba do Sul, denominado córrego do Cula

O ramo que chegou ao Açu foi perdendo força. Mas ele se tornou muito importante. O militar e cartógrafo que trabalhou na região de Campos entre 1783 e 1785, de nome Manoel Martins do Couto Reis, registrou num mapa o curso do que era então conhecido pelo nome de Grande Canal (Manuscritos de Manoel Martins do Couto Reis – 1785. Campos dos Goytacazes: Fundação Cultural Jornalista Oswaldo Lima/Rio de Janeiro: Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro, 2011). Até a chegada da estrada de ferro, os caminhos eram de terra para serem percorridos a pé ou em montaria. Claro. Não existia automóvel. Quem vinha do Rio de Janeiro ou ia para lá a partir de Campos descia por uma estrada de terra até a atual praia do Farol de S. Thomé e daí seguia para o Rio de Janeiro pela costa. Essa antiga estrada acompanhava o canal, que era também conhecido como córrego do Cula. A ferrovia de Santo Amaro igualmente seguiu o curso do Cula, assim como a atual rodovia Campos-Farol. Desse córrego, restaram poucos trechos. Todos eles condenados ao desaparecimento, embora tombado pelo governo do Estado do Rio de Janeiro. Um deles começa ao lado do prédio da InterTV.

Em azul, córrego do Cula em mapa de Manoel Martins do Couto Reis (1785)

Impossível compreender um núcleo urbano, por menor que seja, sem conhecer seu contexto geológico, hidrográfico, biológico e sociológico. A restinga de Paraíba do Sul não se restringe a nenhuma localidade que se ergueu sobre ela. No entanto, cada lugar entende que a restinga deve ter o seu nome: restinga do Açu, de Iquipari, de Gruçaí, de Atafona etc. O grande território arenoso foi esquartejado. Trata-se da maior restinga do estado do Rio de Janeiro e se formou há menos de dois mil anos. Em termos geológicos, é um tempo muito breve. Pelos processos erosivos que se percebem na foz do Paraíba do Sul e na praia do Açu, ela continua em formação. O nome mais adequado para ela deve ser Restinga de Paraíba do Sul, pois foi esse rio que atuou como espigão hídrico retendo areia transportada pelo mar e formando o arremate da planície aluvial. Esse batismo ainda não ocorreu. Seus limites podem ser traçados, a leste, no oceano Atlântico. Ao norte, na foz do rio Guaxindiba. Ao sul, no antigo rio Iguaçu, hoje lagoa do Açu. A oeste, os limites são mais complexos. Na margem esquerda do rio Paraíba do Sul, pode-se considerar a lagoa do Campelo como limite ou a linha entre a restinga e os tabuleiros. Na margem direita, as alterações antrópicas foram grandes. A linha que separa a planície aluvial da restinga era representada por um cordão de lagoas hoje drenadas, tendo na extremidade meridional o grande banhado da Boa Vista. O mapa abaixo mostra os limites da restinga, assinalada em branco.

Carta geológica do norte fluminense (1954) - Alberto Ribeiro Lamego

É possível ainda notar valas rasas na restinga paralelas à linha da praia. O mar não recuou rapidamente e de uma só vez. À medida que regredia, ele ia deixando sua marca. Os pontos altos dessas valas são antigas praias.

E muita água ficou aprisionada nesse processo. Em princípio, água salgada, que foi se tornando doce com as chuvas. Essa água ficou retida em lagoas, brejos, banhados, córregos etc. Na parte da restinga que se formou na margem esquerda do rio Paraíba do Sul, as lagoas e brejos tendem a apresentar formação paralela à praia. Basta examinar a feição da lagoa do Campelo, do brejo de Cacimbas, dos brejos dos Cocos, dos Faria, do Mangue Seco e das lagoas do Comércio, do Meio e da Praia.

Na margem direita, as lagoas e brejos tendem a se dispor perpendicularmente à praia, buscando chegar ao mar, como as lagoas de Gruçaí, Iquipari e Açu. Devemos levar em consideração dois aspectos importantes da restinga na margem direita do Paraíba do Sul: 1- a corrente do mar predominante, que se desloca de norte para sul. Examinando o mapa abaixo, percebe-se como a restinga é maior e mais consistente na margem esquerda. Nota-se também que, nesse trecho, existem processos erosivos significativos em Guaxindiba e Atafona. O jato do rio Paraíba do Sul, por mais fraco que esteja na atualidade, retém areia na margem esquerda. 2- A restinga, na margem esquerda do rio, é ligeiramente mais alta que seu nível médio e, na margem direita, ligeiramente mais baixa. Ainda hoje, as águas do rio transbordadas pela margem esquerda costumam voltar ao rio quando cessa a cheia. Pela margem direita, as águas de transbordamento descem pelo plano inclinado da restinga e não voltam mais ao rio.

Legenda: 1- lagoa do Campelo; 2- Brejo de Cacimbas; 3- Brejo dos Cocos; 4- Brejo dos Faria; 5- Brejo Mangue Seco; 6- Lagoa do Comércio; 7- Valão Paraíba do Sul-lagoa de Gruçaí; 8- Lagoa de Gruçaí; 9- Lagoa de Iquipari

Pela margem direita, as águas de transbordamento desciam pelo rio Água Preta ou Doce (hoje transformado no canal do Quitingute), entravam nas lagoas de Gruçaí e Iquipari alcançando o rio Iguaçu, hoje transformado na lagoa do Açu. Entre o rio Paraíba do Sul e a lagoa de Gruçaí, existia uma ligação natural bastante conhecida dos antigos, que a chamavam de valão. Havia pontes de madeira sobre ele para a passagem de veículos.

Onde está o valão? Ainda é possível encontrar fragmentos dele. Em Atafona, ele é usado como ancoradouro para barcos que entram ou saem do rio. Ele está todo recortado por propriedades rurais e por casas. O SESC Mineiro aterrou grande trecho dele. Em tempos normais, as águas do Paraíba do Sul corriam dele para a lagoa de Gruçaí. A estrada asfaltada bloqueou seu fluxo sem qualquer passagem sob ela. Já aconteceu de chuvas e enchentes inundarem seus fragmentos e invadirem a pista.

Quem vive hoje sem se interessar pelo ontem e pelo amanhã entende o delta do Paraíba do Sul formado apenas pelos braços de Atafona e Gargaú. No passado, ele era muito mais amplo e acionado em tempos de cheias. Descendo pelo rio Água Preta, as águas saíam também pela lagoa de Gruçaí, pelo lagoa de Iquipari e pela lagoa do Açu. O grande delta era então ativado.

Antigo delta do Paraíba do Sul em mapa de Alberto Ribeiro Lamego: 1- braço de Atafona; 2- braço de Gargaú; 3- valão Paraíba-Gruçaí; 4- canal auxiliar; 5- rio Água Preta; 6- lagoa de Gruçaí; 7- lagoa de Iquipari; 8- Açu

Esse mundo começou a se extinguir em 1940, com obras de drenagem do Departamento Nacional de Obras e Saneamento (DNOS), extinto em 1990. Era um ambiente em que dominavam a areia, as lagoas, os brejos, a vegetação nativa e os animais silvestres. O povoador da restinga depois da chegada do europeu ligava-se à atividade pesqueira. Era conhecido como muxuango. A urbanização era reduzida. O acesso aos povoados era feito pela ferrovia Campos-Atafona e por estradas de terra batida.

A restinga de Paraíba do Sul é bem mais do que sua formação geológica e seus sistemas hídricos. Cabe ainda analisar seus ecossistemas vegetais e sua fauna nativa; seu povoamento pelos habitantes pioneiros, que ocuparam a restinga à medida em que ela foi se formando; a ocupação dela pelos habitantes europeus mestiços; a sua história e urbanização. Principalmente, os estudos que foram e vêm sendo efetuados acerca de seus múltiplos aspectos.

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