- Historiador com doutorado na Universidade Federal do Rio de Janeiro, colaborador com a imprensa e autor de 26 livros.
Quando os europeus chegaram a terras que futuramente se transformariam no território do Brasil, o valão dos Veados já existia. Não foi conhecido pelos estrangeiros por estar distante da costa e por ser um curso d’água insignificante perto dos colossais rios que desembocavam no mar das terras desconhecidas. Os povos nativos da região, pertencentes ao grupo linguístico macro-jê, já o conheciam e deviam chamá-lo por outro nome, pois qualquer rio, planta e animal tinham nomes específicos para todos os povos nativos da América. Mas desconhecemos tal nome. Ele foi batizado de Veados muito provavelmente por essa espécie animal buscar água em suas margens, assim como porcos selvagens no Valão dos Porcos, onças no Valão das Onças e antas no Valão D’Antas.
Nos municípios não costeiros do norte fluminense, riacho e córrego recebem o nome de valão. Não se trata de canal aberto por mão humana, mas de pequenos cursos d’água naturais. Daí valão Catarina, valão do Barro e outros valões. Parece que os nomes veado e porco, por adquirirem conotação pejorativa, acabaram sendo esquecidos ou substituídos. Hoje, Valão dos Porcos é Valão dos Milagres e Valão dos Veados é Colônia, 4° distrito de São Fidélis.
O valão demorou a figurar nos mapas. Entre 1783 e 1785, Manoel Martins do Couto Reis subiu o rio Paraíba do Sul até a foz do rio Pomba e registrou o rio do Gentio, depois Grande e Dois Rios. Pelas convenções usadas pelo autor, a região era toda coberta pela Mata Atlântica. Hoje, pelos fragmentos que restaram, tratava-se de uma grande floresta estacional, ou seja, que sofre influência das estações e não fica verde o ano todo. O valão corria protegido por ela. Contava com variada fauna silvestre e estava ainda longe da colonização do tipo ocidental.
A aldeia de São Fidélis já está assinalada no mapa de Couto Reis, com data de 1785. Embora essa parte da Capitania do Rio de Janeiro estivesse coberta de matas, a presença do homem branco já se fazia sentir, embora ainda não de modo ostensivo. Os missionários iam na frente. O valão dos Veados, afluente do rio do Gentio, não figura em toda a cartografia do século XVIII. No século XIX, ele só aparecerá em carta de 1846 com os acréscimos de 1854, entre eles, principalmente a Colônia de Valão dos Veados. Essa colônia foi fundada em 1847 na fazenda de Eugenio Aprigio da Veiga, com portugueses, franceses, belgas, alemães, espanhóis e italianos.
No Relatório dos presidentes da província do Rio de Janeiro, correspondente aos anos de 1835 a 1871, lê-se que a colônia situava-se em terreno: “Montanhoso em seu aspecto, os vales contudo são pouco profundos, e o Valão que lhe dá nome, segue em direção O. O terrenos é seco, sente-se mesmo a falta d’água, tendo apenas a necessária para o uso colhida no rio que corre pela frente. Ao passo que a vegetação é constante, os pastos verdes. E a mata abundante em madeiras de construção, como jacarandá, apriú, roxinho, e pés de vinhático, cedro etc.” (Apud. CHRYSOTOMO, Maria Isabel de Jesus. “Os colonos franceses da Colônia Valão dos Veados – 1845-1854. In: VIDAL, Laurent e LUCA, Tania Regina de (orgs). Franceses no Brasil: séculos XIX e XX. São Paulo: UNESP, 2009).
A descrição da topografia está correta. Entre a Serra do Mar e o rio Paraíba do Sul, o relevo da área é serrano baixo, com pequenas elevações e vales moderados. O ambiente é naturalmente seco, permitindo o desenvolvimento de florestas estacionais. A aparência delas no inverno pode causar a impressão de que estiolam, mas o verde pujante se recupera na estação chuvosa. Reparar que o espírito utilitarista reinante na época do texto não fala em biodiversidade arbórea, mas em madeira boa para construção. Das árvores citadas, o apriú e o roxinho não figuram na lista elaborada por José de Saldanha da Gama (MELLO, José Alexandre Teixeira de. Campos dos Goitacases em 1881. Rio de Janeiro: Laemmert, 1886).
Sem dúvida, o valão dos Veados era bem mais caudaloso do que atualmente. Mas havia um rio bem mais volumoso que ele. Trata-se do rio Dois Rios, mencionado no texto como “rio que corre pela frente”. Nele, desemboca ainda o valão.
No mapa de 1846-54, o córrego não aparece senão como nome da Colônia. No famoso mapa organizado por Pedro D’Alcantara Bellegarde e Conrado Jacob de Niemeyer, de 1858 a 1861, Valão do Veados ainda figura como no registro de 1854, sem que assinale nenhum acidente geográfico correspondente.
Na carta correspondente à província do Rio de Janeiro, que integra o Atlas do Império, obra de Candido Mendes de Almeida, o nome Valão dos Veados corresponde ao mínimo registro de um córrego que aflui para o rio Dois Rios.
Daí em diante, Valão dos Veados aparece como topônimo de uma localidade de São Fidélis às margens do rio Dois Rios. Passou a ser esse também o nome do distrito a partir de 1911, com sede na vila de Colônia, nome que adquiriu todo o distrito por decreto estadual de 31 de março de 1938. O nome refere-se à antiga colônia de europeus instalada em 1847 em terras da fazenda Valão dos Veados.
Em visita ao local, em agosto de 2022, localizou-se um descendente de francês com sobrenome Panisset. Foi também localizado o valão dos Veados, nome significativo para um historiador ambiental. Em suas águas, devem ter se dessedentado outros animais, além de veados. Mas foi esse o nome que ficou e que talvez tenha sido relegado ao esquecimento por ser veado palavra cujo sentido é também homossexual masculino.
Por observações feitas no local, nota-se um terreno levemente ondulado em zona serrana baixa bastante desgastada. Os poucos fragmentos florestais revelam que a vegetação nativa ali dominante é a mata atlântica estacional. O sistemático desmatamento aumentou o efeito de borda e tornou os remanescentes florestais mais secos ainda. O solo está muito erodido e empobrecido. A lavoura parece de subsistência ou quase. As pastagens são ralas. A secura impressiona. A vegetação seca favorece incêndios.
Quanto ao valão, seu curso foi bastante mutilado por construções. Uma delas sugere antiga represa. Em outros pontos, tem-se a impressão de que o leito foi alargado e aprofundado para criar bebedouros para o gado. Em certo ponto, o córrego é interrompido só adquirindo volume novamente junto à foz no rio Dois Rios.
A passagem da colonização deixou profundos rastros de destruição. O tempo agora é de revitalização. As margens do córrego, em toda sua extensão, deveriam ser reflorestadas, criando-se mata ciliar para fixação do solo e infiltração de água de chuva e alimentação do lençol freático. Nenhum obstáculo deve permanecer no leito. Nenhuma barragem deve ser construída.
Toda história é ambiental, mas o ambiente nativo raramente aparece. Quer pela visão do historiador quer pela necessidade de incluir o ambiente. No geral, os historiadores não percebem a natureza. Apenas a obra humana. Trata-se da formação excessivamente humanista do historiador. Fora e além da humanidade, não existe mais nada. Por outro lado, a natureza aparece mais na história econômica e social. Na história política, começa a desaparecer para sumir completamente na história cultural. Mas ela, a natureza, continua sob nossos pés. De uma forma ou de outra, seu registro deve ser feito.