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Arthur Soffiati

Arthur Soffiati

- Historiador com doutorado na Universidade Federal do Rio de Janeiro, colaborador com a imprensa e autor de 26 livros.

Sustentabilidade socioambiental na Região dos Lagos e suas consequências para os rios e mangues de Búzios

Ainda hoje, a geopolítica de cada país consiste em usar a população como fator de segurança nacional. A Amazônia, por exemplo, é o calcanhar-de-aquiles do governo brasileiro. Ela tem 5 milhões de quilômetros quadrados para uma população de 20,3 milhões de habitantes. Considerando-se que 68,9% desse número vive em cidades, a Amazônia é um imenso vazio demográfico desprotegido diante da cobiça internacional na visão oficial. Para as forças armadas e para os governos, ela pode ser invadida a qualquer momento. Contudo, o conceito de segurança nacional mudou. Não é preciso mais superlotar o espaço para conhecê-lo e garantir sua segurança. Os satélites hoje são capazes de detectar uma pulga do espaço. O grande perigo é a leniência com a invasão interna de ruralistas, desmatadores e garimpeiros.

Pulando para a Região dos Lagos fluminense, constaremos que ela tem muita água e pouca terra. A água está contida, em sua maior parte, em lagoas hipersalinas e salinas que se comunicam com o mar. Os rios são pequenos porque descem do divisor de águas entre a região e a bacia do rio São João. Os rios que correm para sul não chegam ao mar diretamente porque encontram logo uma barreira lagunar a sua frente. Portanto, alcançam o mar indiretamente. O maior rio é o Una, que corre de oeste para leste.

A Região dos Lagos, conhecida no plano turístico como Costa do Sol, tem uma área de 2.004 km² com uma população estimada em 538. 650 habitantes distribuída em sete municípios: Araruama, Armação de Búzios, Arraial do Cabo, Cabo Frio, Iguaba Grande, São Pedro da Aldeia e Saquarema. A rigor, Maricá faz parte da Região dos Lagos, mas as divisões administrativas não levam em consideração fatores naturais.

Vivendo do sal, que está em declínio, a região encontrou no turismo sua “redenção”. As lagoas e as praias eram maravilhosas nas descrições de Maximiliano de Wied-Neuwied (1815) e de Auguste de Saint-Hilaire (1818). A vegetação nativa era constituída desde florestas até campos herbáceos na orla marítima, passando por matas arbustivas e manguezais. Mas a beleza de uma região num mundo dominado pela economia de mercado pode ser uma maldição. A Região dos Lagos encontrou no turismo uma caverna de Ali-Babá. Aquelas praias de águas cristalinas encantaram turistas brasileiros e estrangeiros. A população fixa cresceu e, juntamente com a população móvel em alta temporada, tornou-se muito pesada para a região. No verão, é comum ver-se transatlânticos transportando turistas para seus municípios costeiros.

O espaço está saturado de ambiente urbano. Isso significa cimento e asfalto impermeabilizando o solo, o que dificulta a infiltração de águas pluviais. O calor fica concentrado em prédios e pisos. Ar ainda não falta para as pessoas respirarem, mas água já falta. Não há, na região, uma fonte para garantir o abastecimento. Então, é preciso transpor um divisor de águas e recorrer à bacia do rio São João, especificamente à lagoa de Juturnaíba, que foi profundamente alterada para a captação de água por duas concessionárias que atendem aos sete municípios. A lagoa é hoje um reservatório que guarda pouco de sua fisionomia original. Água que entra é água que sai. Só que na forma de esgoto. Ele não pode ser lançado na hipersalina lagoa de Araruama porque altera sua salinidade e a polui, afetando a economia pesqueira e turística. Informa-se agora que ela está sendo progressivamente despoluída.

Os alimentos podem e devem vir de fora, pois a agricultura praticada na região não atende ao consumo na alta e na baixa estações. Onde jogar o esgoto e o lixo? Para o lixo, recorre-se a aterros sanitários, que não é a solução adequada para a Costa do Sol. Eles ocupam espaço, sem contar que têm prazo de vida útil. O ideal seria reduzir, reutilizar e reciclar. Mas ainda estamos longe dessa economia circular.

E o esgoto? As soluções estão longe do ideal. Uma delas é o tratamento em lagoas de depuração, conhecidas pelo nome esnobe de wetlands. Outra é promover o tratamento terciário, como a concessionaria Prolagos propala fazer. Mas resta o efluente final. Fazer o que com ele? Lançá-lo nas lagoas não é a melhor solução porque a salinidade delas é alterada. Usá-lo para limpeza de logradouros e rega de jardins não basta porque é muita água para poucas ruas e jardins. Devolvê-lo à lagoa de Juturnaíba? Parece uma proposta mirabolante mas que pode ser considerada. A solução que vem sendo mais cogitada é lançá-lo na bacia do Una, em três afluentes seus.

Simplificando, essa bacia passou por três momentos nos últimos 6 mil anos. No primeiro momento, o nível do mar subiu e invadiu o Una a partir de sua foz, criando uma extensa área úmida e salgada. Ao descer, depois de 5.000 anos antes do presente, muitos registros fósseis restaram na área que ficou submersa. A bacia do Una foi, então, se estabilizando em novo equilíbrio. Enormes banhados se formaram ao longo do seu curso e nas áreas de inundação. A água doce foi substituindo a água salgada. Então, veio o terceiro momento. A Comissão de Saneamento da Baixada Fluminense e o Departamento Nacional de Obras e Saneamento, a partir de 1935 até 1990, canalizaram os rios da bacia e drenaram as grandes áreas embrejadas. O desmatamento também foi brutal. A umidade reduziu-se drasticamente. A bacia do Una adquiriu um novo equilíbrio, esse mais pobre que os anteriores.

Agora, a Prolagos quer inaugurar um quarto momento, lançando esgoto de três estações de tratamento nos afluentes Papicu, Flecheiras e Malhada. O esgoto, tratado em nível terciário ou não, aumentará oito vezes a vazão do sistema. O aporte de água poluída poluirá mais ainda a bacia do Una. Se tratada em nível terciário, haverá aporte de sedimentos para a praia Rasa, principalmente, mas a pluma do rio alcança uma grande área, atingindo o lado de mar aberto de Búzios. Além do mais, a redução da salinidade no mar alterará a qualidade da água, a flora, a fauna e a economia pesqueira e turística.

Assim como não se pode lançar água doce de esgoto – tratado ou não – na lagoa de Araruama, não se pode também lançá-la na bacia do Una, pois ela alterará as condições físicas, químicas e biológicas dela e também do mar a partir do ponto em que o rio desemboca. Regiões turísticas, como a dos Lagos, Guarapari e Sul Fluminense costumam ter um destino: serem destruídas pela própria atividade turística que propiciam e serem abandonadas. Trata-se de um dos três traços da economia de mercado: o consumismo. Os outros dois são o imediatismo e o individualismo. Quem tem dinheiro para praticar turismo pensa em si e na sua família aqui e agora. Não vem ao caso o dia de ontem nem o de amanhã. Essas pessoas querem conforto. Então, a iniciativa pública e particular cria infraestrutura de turismo que destrói mais ainda o atrativo. A poluição completa o quadro, mas não completamente. Existe a questão da moda. Se a Região dos Lagos sair de moda, os consumidores vão procurar outra e destruí-la também. Não é profecia, mas previsão.

A discussão entre Búzios e Cabo Frio continuará, como se fossem dois países inimigos. A melhor solução mais ou menos imediata para o esgoto é a separação absoluta de esgoto e águas pluviais, o tratamento terciário e o lançamento de grande parte do efluente no mar, longe da costa, por um emissário submarino. Lançá-lo na bacia do Una é transformá-la num emissário sobremarino que despejará água tratada ou poluída também no mar, porém na linha de costa.

A Região dos Lagos pode continuar a usar o nome de Costa do Sol porque o sol não vai acabar, mas ela perderá sua capacidade de suporte, assim como o Centro-Sudeste do Brasil, onde as florestas foram derrubadas, os rios foram represados para geração de energia e fornecimento de água às cidades que cresceram muito além da capacidade dos ecossistemas. Na Região dos Lagos, vai se viver com uma espada afiada pendurada sempre prestes a cair no pescoço das pessoas e matá-las.

Mas é preciso examinar os problemas de Búzios também. Embora parte da Região dos Lagos e sofrendo impactos socioambientais regionais (quase como área de sacrifício), Búzios paga alto preço por suas belezas naturais, assim como uma ave de bela plumagem ou canto, que acaba prisioneira de gaiola. Com relação a rios e mangues em Búzios ou em suas adjacências, examinemos cada um de per si partindo da Carta Chorographica da Província do Rio de Janeiro, formulada por Pedro D’Alcantara Bellegarde e Conrado Jacob de Niemeyer entre1858 e1861

Legenda: 1- Rio Una; 2- Mangue de Pedra; 3- rio Trapiche; 4- córrego de Manguinhos; 5- Mangue de Porto da Barra; 6- Mangue da Ponta da Sapata; 7- Mangue de Praia da Foca

1- Rio Una: como já se viu, sofreu obras de drenagem na década de 1930 e 1940, pela Comissão de Saneamento da Baixada Fluminense e Departamento Nacional de Obras e Saneamento. O curso sinuoso do rio e suas áreas de banhado foram substituídos por um curso canalizado em forma de M e por margens mais definidas. A umidade diminuiu substancialmente. O manguezal deve ter sofrido com as intervenções, mas não há estudo a respeito do tema. O traçado do município de Cabo Frio incorporou a foz do Una, mas os impactos ambientais sofridos pelo rio, como a perspectiva de lançamento de efluentes de esgoto de três municípios em seu curso, afetam Búzios. Entende-se que tal intenção deve ser repelida por Búzios e por todos os demais municípios da Região dos Lagos. A antiga proposta de revitalização da bacia deve ser retomada.

Foz do rio Una

2- Mangue de Pedra: já dentro do traçado de Búzios e pouco abaixo da foz do Una, trata-se de um mangue de borda ou franja, conforme a tipologia fisiográfica para o ecossistema manguezal. Porém se reveste de características próprias por ter se enraizado em praia com uma colina onde se formaram falésias hoje inativas. As plantas de mangue branco, siribeira e agora com a perspectiva de colonização com mangue vermelho enraizaram-se entre pedras. Acima da praia, a colina funciona como uma cisterna da qual flui água doce pela base e pelo lençol freático, temperando a salinidade da água do mar. A construção de casas e a urbanização do entorno ameaça o manguezal, que é base de sustento de uma comunidade quilombola. Pela legislação vigente, toda unidade de mangue é área de preservação permanente em toda a sua extensão, mas a figura jurídica não tem funcionado na proteção desse ecossistema. É preciso uma figura mais eficaz entre as Unidades de Conservação de Proteção Integral que permita a atividade econômica dos quilombolas.

Mangue de Pedra

3- Rio Trapiche: os mapas antigos fazem seu registro, mas ele não se encontra mais no local. Tratava-se de um pequeno rio cujo curso final foi retilinizado, alargado e aprofundado para dar lugar à Marina de Búzios. Sua retaguarda continha muitos brejos. Na parte final da marina, ainda é possível encontrar vestígios do mangue e dos banhados outrora existentes. As transformações parecem irreversíveis. Cabe proteger os banhados sobreviventes pela sua importância ecológica.

Marina de Búzios construída sobre o rio Trapiche

4- Córrego de Manguinhos: Nascendo numa das lagoas existentes em terreno baixo de Búzios, o córrego de Manguinhos desemboca na praia de mesmo nome. Em seu trecho final, desenvolveu-se um manguezal tipicamente ribeirinho com altas árvores de mangue branco. Numa das inspeções, encontrou-se uma plântula de mangue vermelho. A área está muito urbanizada, afetando o manguezal. O córrego deve ser protegido contra invasões e o mangue carece de proteção.

Mangue no córrego de Manguinhos

5- Córrego de Barrinha: também nasce no interior de Búzios e desemboca num ponto conhecido como Porto da Barra. O pequeno curso d’água transformou-se numa vala de esgoto. Um projeto estranho parecia condenar as altas árvores de mangue branco ao corte. Parece que ação do Ministério Público impediu a implantação do projeto. Em seu lugar, foi instalado um restaurante elegante que manteve o bosque, mas impede a comunicação direta da água doce com a água salgada. O estuário está comprometido, mas o manguezal resiste.

Mangue de Barrinha o Porto da Barra

6- Ponta da Sapata: na extremidade da enseada de Búzios, encontra-se outro manguezal de franja pouco conhecido. O acesso a ele dificulta as visitas. Mas é um belo manguezal e deve ser protegido.

Mangue de Barrinha o Porto da Barra

7- Praia da Foca: já voltada para mar aberto, a praia da Foca abriga uma pequena população de siribeira que vem se desenvolvendo. Também ela deve contar com a proteção do Poder Público municipal.

População de mangue preto na Praia da Foca

Deve-se considerar que Búzios está ameaçado pelo crescimento insustentável da Região dos Lagos, mas que tal crescimento também ocorre no âmbito do município de Armação de Búzios.