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Arthur Soffiati

Arthur Soffiati

- Historiador com doutorado na Universidade Federal do Rio de Janeiro, colaborador com a imprensa e autor de 26 livros.

Lagoas serranas do Norte Fluminense

São poucas e muito mal conhecidas as lagoas da zona serrana da Ecorregião de São Tomé, entendida esta a partir da costa que se estende do rio Itapemirim (ES) a Macaé (RJ). Tomando este trecho costeiro, traça-se um quadrilátero. Ele abrangerá três restingas, uma grande planície aluvial, duas unidades de tabuleiros e a parte montanhosa com feições distintas. No conjunto da ecorregião, a zona serrana ocupa a maior área, como pode se ver no mapa seguinte.
Geologia da Ecorregião de São Tomé
Geologia da Ecorregião de São Tomé

A parte em rosa e ocre claros representam a zona serrana baixa, de grande antiguidade pelo trabalho erosivo exercido nela pela natureza. A parte cinza representa a Serra do Mar (Imbé) e a porção em que se encontra a lagoa de Cima é formada por colinas e maciços costeiros, também muito trabalhados ao longo do tempo.

Mônica Miranda Falcão e Verônica da Matta, pesquisadoras da extinta Superintendência Estadual de Rios e Lagoas (SERLA), efetuaram, em 1995, um levantamento das lagoas do estado do Rio de Janeiro. O total alcançou 105, sendo 67 situadas no recorte que recebeu sucessivamente os nomes de Distrito dos Campos Goitacazes, Comarca de Campos e Região Norte-Noroeste Fluminense (Relação das Lagoas do Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Superintendência Estadual de Rios de Lagoas, 1995). Embora tenha sido um levantamento superficial, pois baseado apenas na Carta do Brasil 1:50.000, lançada em 1968, e sem confirmação no terreno, trata-se de um levantamento pioneiro que confirmou o norte fluminense como a verdadeira região dos lagos. Em 105 lagoas, 67 estão no interior da Ecorregião de São Tomé, observando-se que não foram consideradas todas as lagoas de tabuleiros e as lagoas drenadas. Um levantamento histórico, revelaria número maior de lagoas.

Se se tratasse de uma verdadeira lagoa, a Preta estaria na mais alta posição em relação às outras e seria muito isolada, pois localiza-se no âmbito do município de Miracema. Uma vistoria no terreno, contudo, indica que se trata de antiga represa de uma fazenda, contando com pequena superfície. Ela é formada pelo córrego Lagoa Preta. Barrado, ele se alarga numa depressão e volta a fluir na outra ponta. Mesmo assim, a área alagada artificialmente cria um sistema lagunar a ser protegido.

Antes de sair da zona serrana, o rio Muriaé alagava e ainda alaga depressões em suas margens, formando expressivas lagoas. Uma delas ainda existe em Cardoso Moreira, no âmbito de um assentamento rural. Outra de grande extensão é a lagoa de Imburi, também alimentada pelo rio Muriaé e drenada pelo Departamento Nacional de Obras e Saneamento (DNOS). Com o abandono das obras, a lagoa tende a retornar e a se recuperar.

Lagoas serranas às margens do rio Muriaé

A lagoa de Cima está embutida numa depressão da zona de colinas e maciços costeiros. Uma lagoa pode se formar numa depressão existente no terreno ou pode ser escavada por um rio. Os rios Imbé e Urubu encontraram uma depressão natural e formaram a lagoa de Cima. O córrego de Cacumanga, na planície aluvial, escavou uma depressão transformada em lagoa. O mesmo aconteceu com a lagoa Feia do Itabapoana.

O cartógrafo Manoel Martins do Couto Reis anotou, em 1785, que a lagoa de Cima “… é a segunda em extensão, agradável a sua situação, e vistosas as suas margens por serem em outeiros, e em planos. Existe entre o Morro do Itaoca, e o Rio Paraíba, com a vantagem de uma fácil navegação.” (Manuscritos de Manoel Martins do Couto Reis – 1785: Descrição geográfica, política e cronográfica do Distrito dos Campos Goitacazes. Campos dos Goytacazes: Fundação Cultural Jornalista Oswaldo Lima; Rio de Janeiro: Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro, 2011). Manuel Aires de Casal, em 1817, registra-a: “…tem légua e meia de comprido, e mais dezesseiscentas braças na maior largura, compreendendo o saco da Pernambuca.” (Corografia brasílica. São Paulo: Edusp, 1976).

O relato antigo mais completo da lagoa foi escrito pelo sergipano Antonio Muniz de Souza, que a visitou em 1828 e não lhe poupou elogios: “Parece que a natureza formou este local para asilo da meditação, e do repouso (…) Em alguns pontos de suas praias encontram-se pedras, que abundam em ferro; argila ou ocre de um lindo amarelo. De suas margens, que totalizam cinco léguas de circunferência, pode-se avistar o ‘soberbo’ morro do Itaoca.” (Viagens e observações de um brasileiro, 3ª ed. Salvador: Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, 2000). O major Henrique Luiz de Bellegarde Niemeyer, em 1837, limita-se a dizer “que tem 3.200 braças sobre 1.000, recebe as águas do Rio Imbé, e comunica-se com a Lagoa Feia pelo Ururaí (Relatório da 4ª Seção de Obras Públicas da Província do Rio de Janeiro apresentado à respectiva Diretoria em agosto de 1837. Rio de Janeiro: Imprensa Americana de I. F. da Costa, 1837).

O historiador José Alexandre Teixeira de Mello, valendo-se de palavras alheias, diz que ela tem “… cerca de 12 quilômetros de comprimento e metade de largura. Recebe as águas dos rios Imbé e Urubu e dela nasce o Ururaí, que vai terminar na Lagoa Feia. Limpa de vegetação estranha, de um aspecto verdadeiramente pitoresco e poético, só lhe faltam as vivendas confortáveis e acasteladas do europeu para não temer confronto com os afamados lagos da Suíça.” (Campos dos Goitacazes em 1881. Rio de Janeiro: Laemmert, 1886). Quanto à sua fama de lago suíço, firmou-se ela até os dias que correm, muito embora seu estado de degradação a tenha transformado numa pálida imagem do que foi outrora.

Alberto Ribeiro Lamego entendia que “Este grande lençol d’água nada mais é que o rio Imbé, imobilizado pelas argilas que o Paraíba e o antigo rio Preto depositaram à margem dos tabuleiros entre Itereré e o Itaoca (…) O Imbé descansa na lagoa de Cima e dela sai na outra extremidade com o nome de Ururaí.” (Ciclo Evolutivo das Lagunas Fluminenses. Bol. 118. Rio de Janeiro, Ministério da Agricultura, Departamento Nacional de Produção Mineral. Divisão de Geologia e Mineralogia, 1940).

Lagoa de Cima na estação da estiagem
Lagoa de Cima na estação da estiagem

Imediatamente abaixo da lagoa de Cima e associadas ao rio Ururaí, situam-se as duas lagoas do Pau Funcho. Ambas podem ser consideradas marginais ao rio Ururaí e sujeitas à inundação na época das cheias. Ainda hoje, quando chove bastante, as duas lagoas tentam recuperar seus antigos leitos.

O Departamento Nacional de Obras e Saneamento abriu, na década de 1930, dois canais de drenagem e praticamente eliminou as duas lagoas. O uso do solo pelos proprietários em torno de ambas foi insustentável do ponto de vista ecológico. Assim, a sua fertilidade foi decrescendo e a produtividade de cana foi decaindo.

A fazenda de Santa Rita do Pau Funcho, que ladeia a primeira lagoa, foi ocupada pelo MST. Se os antigos proprietários surrupiaram a fertilidade do solo em busca de ganhos fáceis e acabaram por esgotá-lo, entende-se que o Incra, o MST e o governo do Estado do Rio de Janeiro reproduziram os antigos padrões de uso do solo.

A lagoa do Pau Funcho dentro da fazenda transformada em assentamento rural deveria ter seu espelho d’água demarcado na cheia máxima, contando, a partir dele, cem metros nas margens, o que constituiria a faixa marginal de proteção básica, que deveria ser ocupada com a vegetação nativa suprimida. Mas, em vez de protegida, a primeira lagoa do Pau Funcho foi aterrada com o consentimento dos próprios assentados. Cabe agora salvar a outra. O melhor caminho é incluí-la na Área de Proteção Ambiental do Morro do Itaoca.

Segunda lagoa do Pau Funcho no primeiro plano da foto
Segunda lagoa do Pau Funcho no primeiro plano da foto

Na zona de colinas e maciços costeiros, existiam ainda lagoas que mereciam proteção. A mais conhecida era a lagoa dos Patos. A abertura e a expansão da BR-101, contudo a mutilou de forma irreversível.

Lagoa dos Patos cortada pela BR-101
Segunda lagoa do Pau Funcho no primeiro plano da foto