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Arthur Soffiati

Arthur Soffiati

- Historiador com doutorado na Universidade Federal do Rio de Janeiro, colaborador com a imprensa e autor de 26 livros.

A mancha urbana da Região dos Lagos

Em termos geográficos, a Região dos Lagos, como a conhecemos, é recente. Sua formação começou depois de 5 mil anos antes do presente. Que o leitor conte 2 mil anos para o passado, chegando perto no nascimento de Cristo, como estamos acostumados a contar o tempo. Depois, conte mais 3 mil anos para trás. Teremos ao todo, 5 mil anos. Datas muito longas não podem ser precisadas com datações históricas. Por isso, usa-se a contagem do tempo em termos geológicos, tomando-se o presente como marco.

Há 5.100 anos antes do presente, o mar alcançou seu nível máximo no hemisfério sul. A atual Região dos Lagos era maior antes desse avanço do mar. Quando houve o recuou, que chamamos de regressão marinha, a região começou a se definir. As muitas pedras afloradas funcionaram como apoio para reter areia e formar restingas. As partes internas mais baixas permitiram a constituição de três grandes sistemas de lagoas: Araruama, Saquarema e Maricá. Daí o nome de Região dos Lagos.

Esses sistemas lagunares ligam-se ao mar por canais. A salinidade é alta. O sistema de Araruama é hipersalino. O rios são pouco extensos porque o divisor de águas que separa a região da bacia do rio São João situa-se perto do mar. Os rios que nascem nesse divisor de águas correm para o sul, encontrando logo alguma lagoa para interceptá-los. Apenas o rio Una, correndo no sentido, oeste-leste, encontra mais espaço para se estender e chegar ao mar diretamente. No passado, o pequenino rio do Trapiche também desembocava no mar. Sua área estuarina foi aproveitada para a construção da marina de Búzios.

Muito importante do ponto de vista geológico, paleontológico, arqueológico e ecológico, de modo geral, a Região dos Lagos não é propícia e uma urbanização adensada. Falta-lhe uma fonte adequada de água doce. Então, ela precisa ser importada da bacia do rio São João, atravessando o divisor de águas. A lagoa de Juturnaíba, integrante da bacia do São João, foi transformada num reservatório de água para atender os municípios da própria bacia, mas principalmente para os municípios da Região dos Lagos.

Depois de usada, a água servida não conta com um local para destinação adequada. Mesmo sendo tratada em nível terciário, ela não pode ser lançada nas lagoas para não alterar suas propriedades físico-químicas. Água doce em excesso, ainda que limpa, reduz a salinidade da lagoa de Araruama, por exemplo. Usada em serviços urbanos, a água tratada sobra. Retorná-la à lagoa de Juturnaíba custa caro e consiste numa solução polêmica. Tem-se cogitado muito o lançamento dessa água residuária na bacia do rio Una, o que, com razão, vem merecendo protestos dos moradores de Búzios. Discute-se ainda o lançamento dessas águas no mar, por meio de emissário submarino.

Também não há espaço para o lixo. Por mais que se recorra aos aterros sanitários, há um ponto de limite. Devido à grande salinidade das lagoas, a Região dos Lagos tornou-se uma grande área salineira. Na década de 1940, Alberto Ribeiro Lamego escrevia no “O homem e a restinga” (Rio de Janeiro: IBGE/Conselho Nacional de Geografia, 1946) sobre a importância econômica dessas áreas arenosas. Em sua visão pragmática e utilitarista, que era a visão de sua época, as restingas inibem a ação transformadora do ser humano. Ele se torna preguiçoso. Até mesmo a vegetação é enfezada, com suas árvores tortas e seus mangues insalubres. A pouca contribuição econômica que as restingas apresentam está limitada à pesca e à extração salina. A restinga do norte fluminense limitava-se à pesca, enquanto que a da Região dos Lagos restringia-se à pesca e ao extrativismo do sal.

Quando Lamego escreveu a sua tetralogia épica, o turismo não era uma atividade a ser considerada economicamente. A atriz francesa Brigitte Bardot revelou para o mundo aquilo que os portugueses e europeus, no geral, já sabiam sobre a Região dos Lagos: a sua beleza. A atividade turística rapidamente cresceu na Região dos Lagos a partir da década de 1960. Hotéis e pousadas se multiplicaram para receber visitantes. A reboque, desenvolveu-se uma rede de restaurantes. Pessoas com posses construíram casas luxuosas de veraneio nos locais mais paradisíacos e recônditos. Casas também são alugadas. Iates circulam pelo mar da região e transatlânticos ancoram em suas praias na estação de veraneio. Os preços de bens e serviços tornam-se exorbitantes. Faltam pousadas, água, alimento, energia. Trata-se do que os economistas ecologistas denominam de contraprodutividade: a produção de bens e serviços cresce com a demanda, estimulando mais demanda, até que os limites naturais de espaço, de água, de energia sejam atingidos. Assim, a Região dos Lagos pode chegar a um ponto de saturação e perder seu charme. Então, o turismo predatório buscará outro lugar para consumir e destruir.

Localização da área do empreendimento imobiliário

As áreas esgotadas de exploração salina estão sendo aproveitadas agora para a construção de marinas e resorts. Atualmente, quase podemos falar numa só cidade para a Região dos Lagos. Elas são densas no centro e mais difusas na periferia, mas já estão acentuando a conurbação. Inclusive com cidades além da serra do Inoã, que separa a Região da baía de Guanabara. A rigor, Maricá ergueu-se na Região dos Lagos, mas já se está incluída no grande Rio de Janeiro. E as áreas ainda não urbanizadas na Região dos Lagos estão na mira da especulação imobiliária. Atualmente, a área de Ogiva, na margem esquerda do canal de Itajuru, que liga a lagoa de Araruama ao mar, tornou-se um de seus alvos. O município favorece o empreendimento batizado de Viverde Cabo Frio, exigindo apenas um Relatório de Vizinhança. Empresas de consultoria estão sempre prontas para atender a tais demandas. Elas empregam cientistas novatos que não estão se importando com responsabilidade ambiental e social. O Relatório de Impacto de Vizinhança é elaborado em consonância com normas pré-estabelecidas.

Lagoa no interior da área de Ogiva ornada por espécies de manguezal, o que caracteriza Área de Preservação Permanente (APP)
Caranguejos na parte rasa da lagoa

A área de Ogiva sustentou uma salineira desativada. Trata-se área úmida salina com uma lagoa. Há um manguezal constituído de mangue-de-botão, siribeira e mangue branco. É área de pouso e alimentação de aves. A vegetação foi destruída recentemente por um grande incêndio. A instalação de uma nova marina destruirá uma área natural de importância ambiental. Como ela fica entre duas Unidades de Conservação, o mais adequado seria incorporá-la a um das duas, transformando-a em elo entre ambas. Nenhum levantamento de espécies de aves e de peixes foi feito. Se foi, os interesses imobiliários suplantaram a importância ambiental. Os Relatórios não passam de uma formalidade legal. Licenciado e instalado o empreendimento (ele sempre é), a empresa de consultoria, os técnicos e o Relatório não importam mais. O empreendimento ganha vida própria, exercendo pressão sobre os serviços municipais. Ele aumentará demanda de água potável e energia. Aumentará a produção de esgoto e poderá contribuir para ameaçar mais ainda a bacia do Una.

Bosque de mangue-de-botão e de siribeira. Presença de aves
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3 respostas

  1. Prof. Soffiati sempre insuperável na generosidade de partilhar seu grande conhecimento com linguagem acessível e atraente. Ficamos sempre agradecidos por receber suas contribuições esclarecedoras.

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